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19 de abril de 2006
FORA DA ESTRADA
Down on the corner, out in the street, Willy and the poorboys are playin'; Bring a nickel; tap your feet. (J.C. Fogerty, do Credence Clearwater Revival)
Nei Duclós
Já conhecia aquele trecho de neblina bem no meio da estrada que liga Florianópolis a Curitiba. Era o que me preocupava enquanto forçava o golzinho além dos meus limites de velocidade, que variavam, para desespero dos outros motoristas e eventuais passageiros que se arriscvavam comigo, ente os 70 e 90 quilômetros por hora. Mas desta vez, chamado às pressas para resolver um assunto em Curitiba, eu era o próprio mestre de cerimônias da velocidade, ringindo pneu novo em cada curva, como se a montanha de caminhões que se despejavam na estrada não existissem.
RÉ - Sabia que na neblina espessa do trecho em questão eu iria me atrasar. Foi o que aconteceu. Parei atrás de uma tênue luz vermelha, que adivinhei ser a traseira de um tremendo Scania. Achava que não se fabricavam mais esses mastodontes da estrada e confiei no destino, que me colocara atrás de um portento, que abriria qualquer caminho para um motorista espisódico como eu. O problema é que lá pelo segundo quilômetro, equivalente a uns quinze minutos de sofrimento, a luzinha vermelha sumiu de repente e foi substituída por um farol enorme, que espalhava raios azuis por todo o lado, acompanhado de um bufar de dinossauro mecânico. Eu estava, sem mais aquela, no contrafluxo do trânsito!
Iria bater de qualquer forma, quando decidi, no último segundo, dar uma ré suicida, que cruzou a neblina de trás de maneira célere, às cegas, como se eu tivesse surtado de repente. Aproveitei o empuxe para dar um cavalo de pau, que me ensinaram no cinema e que eu jurara um dia colocar em prática. Fui seguindo em frente com aquelas luzes atrás de mim, como se fossem de uma nave espacial, enquanto o ruído aumentava. O estranho é que não havia ninguém mais na minha frente, o que significava que eu tinha sido o último de uma fila e agora ia em frente de volta a Florianópolis. Pelo menos era o que eu imaginava.
CANGOTE - O carro parou novamente, desta vez numa curva acentuada. O animal de lava continuava no meu cangote, impaciente, mas eu estava prestando atenção mesmo era na dissipação da névoa, que mostrava um céu azul pontilhado de nuvens branquíssimas. Quando cheguei ao fim da curva, o dia estava translúcido e eu me deparava com enorme placa na minha frente. Sou um péssimo leitor de placas ou avisos. Já cheguei a confundir "temos tempero para lingüiça" para "tempos de desespero para a lingüiça". Tudo é possível numa época de mau jornalismo. Mas aquela placa dizia outra coisa. Estava escrito: Ciudad Del Mexico, 30 km. Achei que era o nome de um restaurante, apesar de a placa ser daquelas enormes, oficiais, de letras brancas sobre o fundo verde, como mandava o figurino formatado em Los Angeles ou Nova York. O problema é que entrei num rio de trânsito de carrões, com placas de vários países, inclusive do México. Já tinha ouvido falar na história de abdução de um casal que dormiu dentro do carro na estrada e acordou exatamente num lugar como esse onde me encontrava. Não imaginava ser possível, ainda mais comigo, e não naquela ocasião, em que eu me dirigia para resolver um assunto urgente e inadiável. Pois tive que obedecer às sinalizações e penetrar na cidade monstruosa, coberto por fuligem, que era pior do que a névoa anterior. Para onde tinha ido a transparência que vira na estrada?
Tinha sumido, junto com meu bom senso. Eu estava com os olhos esbugalhados, debruçado sobre o volante para melhor ver os edifícios, as ruas, os sinais, as pessoas, o comércio e as praças. Era tudo monstruosamene real e eu, com meu golzinho, destoava do cenário. Isso acabou chamando a atenção de dois guardinhas, que eu sabia temíveis, pois por qualquer coisa dariam a célebre mordida, a propina para continuar trafegando. Um deles bateu com o nó dos dedos no vidro e fez sinal para abrir. Pediu documentos. Eu dei. Ele devolveu. Disse que não valia no México. Onde estavam los papeles, e esfregava os dedos para sugerir dinheiro. Nem lembro da conversa, pois, se tentar reproduzir, vou cair no meu velho portunhol, já que sempre me recusei a falar como os castelhanos, tão deslumbrados com sua lêngua, tanto que se enredam nela a toda hora.
ALAMEDA - Mas depois de alguns minutos de pânico, com a conversa aumentando de tom, decidi dar outra ré e outro cavalo de pau. Saí por um beco lateral que tinha visto minutos antes e caí numa enorme alameda cheia de carros e ônibus. Desviei do trânsito como um piloto veterano e acabei subindo a rampa proibida de um parque. Enveredei por uns trechos de flores, arbustos e pedrinhas coloridas e saí num circulo calçado que abrigava, bem no centro, uma estátua eqüestre. Contornei a estatua e comecei a dar voltas, completamente alucinado. Precisava voltar para a neblina, voltar para a neblina. Quem sabe acharia o caminho de volta?
Foi quando um mendigo se interpôs fisicamente diante do carro e me obrigou a parar. Sacudindo as mãos, desesperado, pedia ajuda, precisava ir para o hospital, pois estava tendo um ataque. Forçou o vidro e entrou de maneira abrupta, se jogando no banco ao meu lado. Fiquei olhando para ele com minha cara de louco quando ele puxou um trabuco 45 e me colocou dentro de uma das ventas. O mais gentil que ouvi foi hijo de puta. Tive que obedecer a suas ordens e me mandei por uma rua mais ou menos calma até chegar perto de uns sujeitos mal encarados. Era um grupo da pesada. Estavam sentados em cima de uns latões de lixo e ficaram me olhando de maneira cavernosa. Meu seqüestrador explicou que eu era um motorista de mão cheia e poderia muito bem dar conta do recado. Todos então entraram e se aboletaram no carrinho que naquela altura deixara de ser novo para virar um traste. Eu tinha batido a porta num coqueiro no parque, de raspão, quando quis desviar de um esquilo mutante, pois só animais mutantes poderiam viver naquela droga.
PALITO - Ao meu lado estava o ex-mendigo, que já tirara seu disfarce (um saco de aniagem e um chapéu rasgado) e envergava um terno azul, com camisa ocre e gravata preta. Era magro, alto, de rosto encovado e tremia ao segurar o revólver, que agora estava depositado no colo. Atrás estava El Gordo, que ocupava metade do banco. Tinha a cara de índio, um bigode espigado e uma barba rala. Equilibrava um palito nos dentes e falava com voz fina, que era subsituída às vezes por um ronco. Usava um chapeuzinho de aba curta, com uma pena pequena, colorida , atrás, tipo filhote de chapéu de Robin Hood. E ao seu lado, espremido, estava um fuinha baixinho, com tiques nervosos, todo coberto de jeans, uma ruga na testa, cabelo de milho, ralinho. Era chamado de El,Pibe. El Gordo era o próprio. E o seqüestrador era o Coiote.
A tarde já vinha caindo e me levaram para outro beco, onde se destacava na parede de tijolos à mostra enorme anel de aço com os dizeres de um banco. Parece que era bank de alguma coisa, era deposito de dólares, por supuesto. Eles pararam bem em frente ao troço e descarregaram as sacolas cheias de material. Coiote fazia a segurança, sem desgrudar o olho de mim, El Gordo cuidava dos detonadores, maçaricos e bombas e El Pibe era o artífice, o cara que colocava fio de aço dentro de fechaduras milimétricas. Na hora que conseguiram algo, o gordalhão deu uma forçada na tampa daquele cofre e abriu de um safanão. El Pibe mergulhou lá dentro levando um bolo de sacos plásticos vazios e logo colocou a cara para fora. O cofre só continha papeles. Os putos vinham para o beco depositar a papelada das empresas, jamais dinheiro, pois o lugar era meio sinistro e levantava suspeitas. Talvez tivesse sido construído quando ali era uma rua aprazível, lá pelo meio do século passado.
GOSMA - O gordo não quis nem saber. Se solo tiene papeles, ponhálo papeles em la botija (já falei que meu castelhano é execrável). Como Pibe não dava mais sinal de vida, o Gordo colocou a cara para dentro e descobriu o embrulho: os papéis estavam atrás de uma grade. Os pulhas do banco tinha encarcerado a papelada e ido hoder, assim com agá aspirado. O gordo então passou para o companheiro um naco de gosma plástica para detonar a porra. Pibe saiu de um salto quando El Gordo disse que ia detonar tudo. Ouviu-se um estrondo seco e o pibe voltou par dentro, saindo de lá com uns sacos chamuscados de papéis. Idiota, queimaste tudo, dizia para o gordo. O segurança nem olhava para a cena. Colocava um olho no final do beco, que aquela hora parecia a luz no fim de um túnel, e outro ainda em mim.
Entraram batendo porta e tive que sair na disparada. Duas fardas tinham adentrado o corredor bem lá atrás, no outro lado da ruela. Era a ronda habitual. Sumi derrubando lixo e voltei para a rua principal, enquanto ouvia as reclamações gerais, da bosta que tinha sido aquela idéia, aquele roubo. E ainda mais, com este motorista brassilenho, que só sabe jugar fubol, carajo de mierda, me cago em la leche de tu madre (isso tirei de Hemingway, que tem uma literatura cubana onde as pessoas vivem cagando no leite materno, seja isso o que for; serve para eu descrever a cena, real). Então me levaram para subúrbio, para um casarão mal assombrado, vazio de móveis e cheio de teias de aranha. Lá reviraram de novo o butim, e descobriram umas ações ao portador que valiam no mínimo um mijone de dôláres. Deram saltos de alegria, chegaram a me oferecer tequila e a me bater amistosamente nas costas, mas ficaram mudos de repente pois descobriram que teriam que se identificar no banco para pegar a bufunfa.
FRITO - Naquele banco no y no, disse El Gordo. Bueno, bamos en otro, disse El Pibe. Em outro, pero no nosotros. Bamos a convocar Ronaldino Gautcho aí, el brassilenho cagado, que les parecen? Eles me olharam fundamente e despencaram de tanto rir. Eu estava frito. No dia seguinte me colocoram à força um terno parecido com o do Coiote, e fui, vestido de mafioso cucaracho, num banco perto dali, poderoso pela altura, e horrendo pelas cores, guardas e clientes que estavam nele. O gerente verificou meus dados, pediu passapuerte, eu disse que não estava comigo nel momento, mas ele poderia pegar uma ventaja de diez por ciento de las aciones, o que deixou o infeliz esfregando as mãos de contente. Mas disse que eu teria que fazer um depósito na minha conta em outro banco com o valor das ações, pois ele não dispunha de cash no momento. Ouvindo isso, El Gordo despencou sobre a mesa, bateu nela e disse: dá-nos algo, cabrón.
O cara então consentiu em nos passar 80 mil dólares e o resto, uns 400 mil (era, claro, a metade do que tínhamos calculado) eu repassaria para outra conta, no caso, a do Coiote, que era o único que dispunha de uma vida regular. Tudo combinado saímos, eu com minha mala (para não dar na vista), eles com recibo do depósito. Em frente ao elevador modernoso que custou a aparecer, tinha outra porta, de um elevador daqueles antigos, com porta sanfonda. Os novos ricos estavam esperando o cadilaque quando tive a oportunidade de saltar para dentro do fusqueta que bruscamente abriu na minha frente e fechou nas minhas costas. Ainda ouvia os gritos de te voy a te matar, ronaldino gaudutcho, quando cheguei no térreo e disparei em direção ao meu golzinho. Saí na corrida com meus 80 mil dólares gritando alucinado: voltar para a neblina, voltar para neblina.
BARULHO - Parece mentira, mas consegui chegar na altura da estrada onde tinha se dado o evento. Peguei a mão certa e me aprofundei na espessa nuvem que cobria o caminho, situação agravada por ser já tarde e o sol de novo insistia em querer se por. Eu tinha ficado o dia inteiro naquela lida de novo. Quantas horas ficara naquele banco, sentado em meio a senhoritas nerviosas e cucarachos insanos, suados, dependurados numa dívida de num lugar que dava as perigosas mordidas? Só sei que voltei para o lugar onde estava e descobri novamente que as luzes de um latão medonho fazia barulho para eu sair da frente. Desta vez eu desviei para a direita, cruzei uma ilha coberta de mato e entrei na mão segura e correta. Consegui sair da neblina e ver a placa salvadora: Curitiba, 150 quilômetros. Decidi seguir em frente, pois me apavorava o fato de cruzar a neblina de novo.
Fique até a manhã seguinte na capital paranaense. Vendi o carro no primeiro pátio que depositava segunda mão e peguei um ônibus. Não ia arriscar. Deixava tudo na mão do motorista. De avião não daria certo, poderiam me revistar no aeroporto com meus valiosos dólares. A viagem rolou pela estrada até chegar ao trecho fatídico. Foi só dar 15 minutos naquele sufoco e vi da janela a cara do Coiote vibrando o revólver em minha direção. Abrite, ronaldino, dizia. N frente do ônibus, o pobre do motorista já era rendido e entraram então El Pibe e El Gordo, que me carregaram par fora da lotação. Entrei num cadilacc azul prateado, no banco de trás, sendo espremido por gordão. Na frente iam os dois outros meliantes, já contando o fruto do roubo. Quando viram que tudo estava certo, encostaram na estrada, pararam o carro e me olharam fixamente . Iam me matar, claro.
CONVERSA - Bom trabalho, campeão, me disse o Coiote, completamente sem sotaque.
- Te foste muito bem, disse El Pibe, com sotaque gaúcho.
- Não elogia muito o cara, seu plaquero, disse o gordo.
Plaquero? Sim, o pibe era o rei das placas, fazia qualquer uma. Tinha pesquisado na Internet e sabia imitar os dizeres do trânsito de qualquer lugar do mundo. Ganhamos, tchê loco, gritava El Pibe, ganhamos um montão de grana. Não t falei que era moleza, dizia El Gordo, com sotaque de manezinho da ilha de Floripa.
- Mas vocês são brasileiros.
- Claro, idiota. E mexicano tem alguma idéia de fazer alguma coisa?
E foram cantando down on the corner aos berros, acompanhando o rádio que esgoelava o Credence, enquanto eu afundava no mais completo abismo mental, pois tinha sido vítima de uma armadilha.
- Mas como vocês fizeram, como sabiam? Aquela cidade não era o México?
- Era Joinville, imbecil, tu não conhece Joinville. Ta cheio de banco de alemão e americano com grana.
- Mas Joinville é uma cidade limpa, sem poluição.
- É mágica do plaquero, disse El Gordo. Você vê a placa e acredita. Aí tudo fica sendo visto através da neblina.
No rádio do carro tocava: Não precisa ter um penny, basta um níquel para Willy and the poor boys. Down on the corner...
- E por que me escolheram?
- Tu vive dando banda na internet, seu besta. Contaste essa história do México, da nave espacial e nós bolamos o assalto. Tu é mesmo um abostado, dizia El Pibe.
- E os guardinhas, os guardinhas?
- São de lá mesmo. Acharam que tu era argentino e quiseram te dar uma sacaneada.
- Mas eles falavam México, México.
- É que tu é preconceituoso mesmo, disse El Plaqueador. Acha que todo castelhano usava chapéu de aba larga. Falou espanhol e acreditas mesmo que estás mesmo em Ciudad Del Mejico.
E se esborracharam de rir.
- Mas e a praça? Como foi que me encontraram?
- Tu foste levado para lá, sua mula. Não tem outro caminho. Todas as ruas daquela região dão no parque. Quando tu entraste no miolo da praça, o coiote correu no teu encalço.
- Pára aí. E o gerente? Ele me pediu passaporte. E falava espanhol!
- Porque tu tem cara de gringo, animal. Tem sobrenome metido a besta, por isso.
Eu não me conformava:
- E porque vocês não foram ao banco sozinhos?
- Porque até em banco bandido não temos chance. A gente precisava de um laranja.
- E o que vocês vão fazer comigo? Vocês já têm toda a grana.
- Toda não, só os 80 mil. O resto foi para uma conta inexistente. Não podemos correr riscos. Mas oitentinha já paga todo o investimento.
Eu estava com o horror estampado na cara. Vendo meu desespero, El Gordo tirou o palito da boca e me ofereceu, com o rosto consternado, cheio de piedade:
- Quer uma lasquinha? Esse é teu pagamento.
MANHA - E me deixaram no meio da estrada, sem gol, sem grana e com muita raiva dos mexicanos, porque eu precisava naquele momento odiar alguma coisa.
Gritei no meio do nada:
- Não é Ronaldino, seus putos. É Ronaldinho, de manha, de fanho, de sanha. É o nhá dos índios seus jodidos.
Vinha um som de algum lugar. A letra dizia: basta um níquel que Willy e os pobres garotos vão te agradecer e continuar tocando.
RETORNO - Este conto é uma homenagem ao disco maior da minha banda favorita, que escutei por um ano inteiro, até furar o vinil.
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