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25 de março de 2006

O LUTO DE MARÍLIA PERA




Se a série JK, da Globo, que chegou ao fim, foi o início da campanha presidencial da direita, agora encarnada no candidato Alckmin; se ignorou, para sepultar, Leonel Brizola e Samuel Wainer em favor de Carlos Lacerda (caricatura que se humaniza no final), Roberto Marinho e Adolpho Bloch (tratado como grande figura humana); se mentiu sobre a posse de Jango em 1961, ao não citar a resistência da Legalidade; se foi um desfile de atores gordos e velhos se deliciando com atrizes jovens, como sempre acontece nas produções da rede; se tenta livrar a cara da Arena (civil) com um personagem cheio de remorso, para jogar toda a culpa da ditadura nos militares; se fez de JK um herói acima de qualquer coisa, em detrimento de suas origens varguistas; pelo menos no último capítulo houve um momento de alta dramaturgia, graças a Marilia Pera, a maior atriz do Brasil.

No fundo, acho que a falta de densidade da trama, que precisou mentir sobre fatos e personagens recentes, sua extrema superficialidade, empurrou a responsabilidade para Marilia Pêra, que, se fez uma Sara Kubistchek sem muito destaque, acabou detonando na hora do luto, quando encara o telespectador ao som de Milton Nascimento (o que revela toda a riqueza da letra de Peixe Vivo) e no momento seguinte, berra, desesperada, sem som, para a câmara que está situada no fundo do caixão, na maior representação da perda que a produção audiovisual brasileira já mostrou.

ELA - Marilia Pêra sobra em tudo o que faz. Tive a oportunidade de assistir o espetáculo Elas por Ela, em São Paulo, e fiquei abismado. Marília Pera não costuma fazer agrados a ninguém. Se segura nas suas opiniões e chegou a ser execrada quando, num gesto profético, alertou sobre Lula. No capítulo final, ela/Sara exige de JK/ José Wilker o amor que lhe falta no fim da vida, cobrando a conta de uma vida dedicada ao marido. A personagem se torna patética e humana, longe da sua imagem pública. É uma performance diferente da de José de Abreu, que ao humanizar Lacerda com um choro que se esforça para ser sincero, esconde o principal sobre a sinistra criatura que ajudou a derrubar todos os presidentes até implantar a ditadura entre nós.

GOLPISTA - Até hoje lembro da capa da Fatos & Fotos, uma das picaretagens de Bloch. A grande revolução, dizia a manchete da revista , mostrando Lacerda rodeado de cumpinchas. Quando o golpista morreu, passei por acaso na hora do velório pelo Cemitério da Consolação, em São Paulo. Era meu caminho para o trabalho. Não havia ninguém. O homem que pregou o ódio a vida inteira teve seu troco. Não adianta agora a Globo inventar que a Frente Ampla foi uma grande coisa ou que Lacerda mudou depois da ditadura. Foi sempre o mesmo. Segundo a principal testemunha (apresentada no Fantástico), deu um tiro no pé para incriminar Vargas no famoso atentado da rua Toneleros.

CALDEIRÃO - Fico pensando: os autores de tanta mentira acreditam mesmo que podem fazer ficção descomprometida com a História em plena campanha presidencial? Será que acreditam nessas mentiras ou estas são implantadas de cima? É o dono que liga e diz: "Mostra meu pai como o rei da cocada preta, senão vai ter!" Ou: "Nem pensar em Leonel Brizola e a Legalidade. Nem pensar!" A demiurga então dá um gritinho e começa a mexer na grande panela de ferro. "Vamos fazer uma série bem ao gosto dos patrões, ih ih ih". Mas dos ingredientes voa uma sombra luminosa É Marilia Pêra, de frente para nós, destruída pela dor. O talento, quando quer e tem compromisso com a própria vocação, cumpre seu destino. Torna-se antológico.

RETORNO - "Prezado Nei Duclos, sou o oitavo filho de Arraes(de um total de 10) e queria apenas dizer que seu artigo me comoveu.Chorei quando como próximo de sua partida. Lula. luiz arraes | 03.23.06 - 12:15 pm"

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