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14 de março de 2006

A HISTÓRIA NO ACOSTAMENTO





O ônibus parou e todos desceram. Fiquei lá dentro, me perguntando o que tinha acontecido com a viagem. Ao meu redor só havia árvores. Estávamos num acostamento e até mesmo o motorista sumira. Eu vinha de Porto Alegre, convocado para participar do lançamento do Jornal de Santa Catarina. Resolvi descer e perguntar. É o fim da linha, me disseram. Isto é Blumenau? perguntei. Era. Foi quando conheci Nestor Fedrizzi, que fora chefe da redação da Ultima Hora gaúcha por quatro anos, e estava catando jornalista no grito, já que ninguém queria ir para o interior de Santa Catarina. No telefone, dissera para ele: quero ir, mas estou duro. Pago tua viagem, foi a pronta resposta.

Sem saber, eu estava trafegando no acostamento da História. Naquela redação do Vale do Itajaí, o braço direito de Fedrizzi era José Antonio Ribeiro, o Gaguinho, ex-repórter da mesma Última Hora. Ambos personagens de Jefferson Barros no seu obrigatório Golpe Mata Jornal, da Já Editores, sobre a UH gaúcha, que comprei na Feira do Livro de Uruguaiana no ano passado, quando fui patrono a convite da Prefeitura. O livro, que resgata a história do jornal assassinado pelo golpe de 64, é de 1999. Alguns anos depois, o próprio Jefferson encontrou o mesmo destino: morreu na miséria, sozinho, esquecido, num hospital público de Porto Alegre. O ex-editor do Jornal da Nacional, um dos maiores e melhores textos das redações por onde passou (Jornal do Brasil, Estadão, Correio do Povo etc.), erudito e autodidata, crítico de cinema de primeiro time, cometera um crime: entre seus seis livros (romance, poesia, ensaios), escrevera a mais importante análise sobre o assassinato da imprensa brasileira.

Vou dizer porquê. Primeiro, porque Jefferson Barros trabalha as contradições, os conflitos que regeram o nascimento e o crescimento da cadeia UH, criada por Samuel Wainer. Segundo, porque mergulha fundo nas origens da imprensa gaúcha e a situação em que se encontrava quando a UH do Rio Grande do Sul veio à luz. Terceiro, porque o espírito livre do autor não abre mão do rigor metodológico. Esse aparente paradoxo - a liberdade da abordagem vestindo a luva do racionalismo dialético - faz do texto de Jefferson uma aula de História. Pior para todos nós: é um roteiro de como a História foi jogada no acostamento.

O que se destaca não é apenas a denúncia do assassinato, mas como as contradições influíram para que o jornal perdesse o rumo para depois recuperá-lo; como seus jornalistas, divididos em correntes diversas, atingiram a unidade quando a onça bebeu água (a campanha da legalidade de 1961); e como o golpe de 1964 se prefigurou nos desdobramentos das edições, reflexo das poderosas forças sociais e políticas que engendraram primeiro a vitória democrática da posse de Jango, depois o limbo perigoso do parlamentarismo e finalmente o pesadelo do putsch reacionário, que vitimou a nação.

A coragem de Jefferson Barros ao colocar todas as cartas na mesa, sem fazer concessão para absolutamente ninguém, é fruto da sua ética e de sua lucidez. Seu talento e preparo promovem milagres. Ele não abre mão da alegria, pois seu resgate profundo nos leva de roldão pelo jornalismo acima, como se, ao ler, fôssemos também protagonistas. Ao mesmo tempo assume ser o narrador de um choque de trevas, ao abrir o ventre do golpe que abortou o país e ao soprar o pó acumulado nas hostes progressistas, nacionalistas, esquerdistas e populares. Mas toma posição firme a favor do projeto que morreu nos braços do povo: sua obra, especialmente o último capítulo, " Silêncio suspeito sobre ícones jacobinos",em que faz um paralelo entre o governo de Robespierre e a experiência da Última Hora gaúcha, é uma peça da cultura política do país que não deveria faltar na biblioteca de ninguém.

Jefferson Barros não é bem-vindo em nenhum reduto, a não ser nos que contam com a verdade. Por isso merece estar junto conosco, ele que se foi precocemente, reconhecido por seus pares, mas desconhecido das novas gerações. Nesta época em que impera o deserto, o melhor de nós está enterrado em algum baú, em algum canto, em algum ermo nos rincões desconhecidos da imensa pátria. Precisamos dessa voz silenciada, desse texto liberto, dessa guinada que um escritor dá, à custa da própria vida, para tirar a História do desvio e jogá-la de novo na rota segura do entendimento.

RETORNO - 1. Urariano Mota brilha em longa entrevista para o site Musibrasil, de língua itliana e especializado em Brasil. É mais uma cravada do romancista maior, que discorre sobre seu trabalho e especialmente seu grande romance "Os Corações Futuristas", resenhado por mim, em texto publicado aqui no DF e no jornal Rascunho. O mais importante é que os italianos fazem justiça a um talento ainda oculto, mas não por muito tempo. 2. O poeta Marcelo Ariel publica mini-entrevista comigo no blog Teatro Fantasma. Por que escrevo? Leia a resposta.

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