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25 de fevereiro de 2006

O CARNAVAL SEM SOBERANIA





O carnaval era a festa que precedia a quaresma, a data marcada para a alegria coletiva, que o povo transformou em transgressão e cultura. Num tempo de intensa sobriedade, o carnaval era a permissão antes do recolhimento, para que os atores sociais se expressassem sem as amarras que definiam identidades. A máscara é isso, uma nova identidade, que ao se produzir em massa, quando é a mesma fisionomia que faz sucesso, torna-se um ser coletivo, irmão do espírito de grupo. A troca de sexo (saída para as imposições familiares), a ocupação da rua (fim dos limites entre a passagem do séqüito real e a observação dos anônimos), a união dos blocos (representação da solidariedade perdida) e o ritmo que modifica o passo, que em dias normais é sempre igual, são as composições deste período que definiu o rosto do Brasil e cruzou todas as artes.

ENREDO - Fomos o carnaval quando havia soberania. O desfile das escolas de samba, tão estudados e criticados, foi a organização encontrada pelo Estado a partir de legítimas manifestações populares, para que o espontâneo encontrasse um lugar, a criação uma vitrina e o enredo um motivo. Até hoje essa intervenção é seguida, mas jamais da mesma forma. Vejam os sambas enredo deste ano. Com exceção do samba da Mangueira, nenhum (dos que eu vi na TV) possuem linguagem poética. São narrativas toscas, frases emendadas sem o brilho da metáfora, sem a força da originalidade, e completamente desvinculadas de suas origens. Quando haviam compositores nesse ramo, a história era outra. Por que não existem mais? Porque não existe mais o vínculo entre o povo soberano e a nação soberana. O que há são comunidades pressionadas pelos interesses mais vis, que deságuam nas estrelas da mídia ocupando a passarela que deveria pertencer aos excluídos e anônimos. O espaço do carnaval, como todo o resto, foi ocupado pelos donos do imaginário do país e o que temos é o luxo sem o berço da paz social. Há exceções. Escolas e carnavalescos conseguem, muitas vezes, mostrar algo de muito bom. Mas o que impera é a fraude e a maioria da nação bestializada diante da tela da TV.

GURU - A overdose de Ivete Sangalo ( a que investe sobre a platéia com os tratores da sua voz), o baticum sem as nuances do melhor do samba, a bateção monocórdia dos tambores, o esgoelamento dos falsos cantores, a rigidez das regras técnicas do desfile (com aqueles comentaristas!) fazem do carnaval brasileiro uma tristeza sem fim. Tem gente que se diverte e não são poucos. A juventude é imensa no país onde 27% dos jovens não trabalham nem estudam, conforme recente pesquisa, ou seja, não têm para onde voltar na quarta-feira de cinzas. Por isso a festa se estende indefinidamente, pois isso é bom para os anunciantes e para a mídia. O que se viu nesta véspera de carnaval, em que o país foi brindado com rock milionário subsidiado pelo dinheiro público, e que um vocalista se tornou uma espécie de guru das idéias prontas, é de lascar. Vi no Orkut falarem mal de Getúlio Vargas, que trouxe para cá o Orson Welles (Getúlio, claro, ditador, e Welles seria um folgado que veio zoar no Rio e acabou sendo responsável pela morte do jangadeiro; e não um dos maiores gênios do cinema em visita ao Brasil) . Pois bem, Lula apareceu ao lado do Bono Vox. Dá para comparar?

DEBATE - Tive recentemente uma experiência terrível num debate. As partes pudendas do desplante, a arrogância fundada na ignorância, o fio dental do obscurantismo investiram contra algumas palavras que eu disse. É o carnaval da ignomínia. É o retrato do país sem paradigma, solto, ao léu, como folha ao vento. É comum hoje acusarem as pessoas de velho, carrancudo e tudo o mais. Alegria se conquista. Não é uma imposição dos tempos, como se estivéssemos numa feira. Na cultura, a alegria é o prazer da criação e da recepção. Uma não existe sem a outra. Mas para que haja cultura, é preciso coragem. Se no lugar de te escutarem, te atacam, se usam tuas palavras contra ti é sinal que o país está roto e essa ruptura se espalha por todo o tecido social. Nada nos une nessa alucinação coletiva. E o que mais impressiona é a segurança com que dão conselhos, essas almas medíocres que se instalaram por todo o canto, deixando pouco espaço para quem tem algo a dizer. Quando abrem a guarda, cuidado, é apenas uma armadilha.

RETORNO - Em poucas semanas, meu trabalho acadêmico "Cultura, carnaval e cinzas", que está no meu site , teve mais de 400 acessos. O total é mais de mil acessos. É um fenômeno, pois deixou bem para trás o campeão até agora dos textos lidos, "A idéia de salvação da pátria nas memorialística militar". Ao mesmo tempo, li comentários, assinados por Raquel, sobre meus textos de homenagem a Pelé e Romário que me encheram a alma nesta épooca dura, em que estamos cercados de inimigos.

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