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30 de dezembro de 2005

MUDAMOS PARA SEMPRE





Faça o balanço: éramos uma nação insatisfeita em janeiro de 2005, hoje somos uma nação insurgente. Algo se rompeu dentro de nós e isso nos desamarrou. Num primeiro instante, nossos braços e pernas, soltos enfim dos nós que nos prendiam, imitam o movimento das marionetes. Jogamos para todo lado o corpo e as idéias em parafuso, até que num momento, acho que pela primavera, quando desceu a poeira das denúncias e nos vimos na mesma sinuca de sempre, a reflexão tomou conta de nós maneira poderosa.

ÁLIBI - Caíram por terra todos os poderes da República e seus instrumentos. Caiu a publicidade, álibi perfeito para a corrupção, caiu o discurso oficial, chantagem sobre as necessidades de mudança, caiu a máscara da direita, que quis se aproveitar da oportunidade para posar de vestal, caíram os ídolos, envolvidos até a medula com o esquema manipulador, caíram as crônicas, os autores, os pensadores, todos tentando tapar o sol com a peneira, sem ter o que dizer sobre o longo período anterior, enfim nu, em que ficaram ditando regras para nossa leitura admirada. Restou apenas um punhado de areia molhada no amanhecer, quando o mar, eterno, vem nos dizer que existe a tua alma, muito maior do que qualquer decepção. Então sabemos: o que fica é a manifestação do nosso espírito livre, semente de uma transformação que poderá levar gerações, mas que começa agora, neste 2005, quando mudamos para sempre.

VERÃO - Cidadãos que vivem onde o mar não banha chegam a Florianópolis com seus automóveis e ansiedade. O mar virou um luxo, atraindo multidões que vêm para cá gastar suas pequenas poupanças. Compatriotas cercados pelo pesadelo urbano dos ruídos e da loucura, da insegurança e da miséria, chegam exaustos e passeiam, ainda tomados pelos hábitos e ritmo que trazem das suas cidades, pela praia agora tomada pelos trabalhadores do Brasil soberano, pessoas a que chamam de turistas. Não vejo turistas, vejo brasileiros usufruindo legitimamente o próprio território que lhe é tomado a maior parte do ano. As televisões se exaurem de fazer a reportagem, sempre a mesma, de quanto cada um vai gastar nas biroscas que o acolhem com quinquilharias e na esperta indústria hoteleira. Os preços despertam e as ruas ficam tomadas pelo trem formado por tanto carro. É como enchente: todo ano tem, e o poder público é sempre surpreendido. Imaginem se nevasse. Puxa, nevou, que tragédia. Pois existe a temporada de verão, em que o Brasil despenca para suas origens, a praia. Pouco se faz para receber essa maré, a não ser arapucas. Há também obras, tardias, que ajudam a piorar o caos. Mas pelo menos há obras, alguns remendos, outros nem tanto. A nação insurgente banha-se no mar. Algo se partiu dentro de todos.

APROPRIAÇÃO - Sem liberdade de expressão, as falas perdem o poder. Para compensar, todos se voltam contra todos. Notem que toda frase começa com um não. Você fala qualquer coisa e o interlocutor aparta com uma negativa, mesmo que esteja concordando. É o vício das falas despossuídas, em que a pessoa precisa se apropriar da fala alheia para poder se sentir vivo. Por esse motivo existe tanta falta de entendimento. A pessoa não compreende o que houve? Não, ela simplesmente interrompe o outro para poder dominar a conversa. Ouvir é submeter-se e isso não funciona num país de escravos, onde todo mundo é senhor. Mas este ano encontramos o caminho para nos libertar dos grilhões. E esse rumo começa na linguagem, na fala sintonizada com o Outro, no verbo que encarna o Brasil soberano.

CRISTAL - Parece que há algo semi-enterrado na areia. Empunhamos esse achado com ambas as mãos. É um cristal, que a luz cruza em mil nuances. O pipocar de cores toma conta do nosso corpo. Somos pegadas de um novo tempo. O amor cabe em cada rastro, como a luva imita o aceno. O sonho aporta tocando fanfarra.

RETORNO- 1. A foto de minha neta Maria Clara na praia de Ingleses, em Floripa, é a melhor mensagem de Ano Novo que posso desejar aos leitores do Diário da Fonte. 2. O título do livro de Luiz de Miranda, "Nunca mais seremos os mesmos", define 2005, o ano em que a obra foi lançada.

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