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29 de outubro de 2005
O BRASIL QUE PERDEMOS
Hoje, quando completo 57 primaveras, meu editor Dorva Rezende, brilhante jornalista da nova geração a que me refiro neste texto, me brinda com a publicação no seu obrigatório caderno Cultura, do Diário Catarinense, da minha resenha sobre dois livros. Um, o novo romance de Moacir Japiassu, Mestre; e outro, a biografia do Tarso de Castro, por Tom Cardoso, amigo e filho de amigo.
Nei Duclós
Se a História é pura representação, como quer Hayden White e seu inesquecível livro Trópicos do Discurso; se os fatos jamais poderão ser resgatados em toda a sua complexidade, mas podem ser entendidos em parte graças à pesquisa e à conceituação, como quer Weber e seu Tipo Ideal; e se a Revolução Francesa não passa de uma versão genial de Michelet construída 40 anos depois da Queda da Bastilha (em que seus desdobramentos, a ditadura imperial e a restauração monárquica, fatos, foram deixados em segundo plano em benefício da idéia de heroísmo popular), então a História não pode ser vista a olho nu. Cai por terra, assim, o lugar-comum "testemunha ocular da História", tão cara ao jornalismo brasileiro, até hoje vigente, tanto é que os repórteres de TV costumam repetir que "estamos presenciando um momento histórico".
Mas a sofisticação teórica não costuma se implantar automaticamente, e toda a mudança de paradigma, como defendeu Thomas Kuhn e sua A estrutura das revoluções científicas, se impõe forçada pelo Tempo e não pela Lógica, ou seja, só quando as carreiras acadêmicas fundadas nos parâmetros consagrados desaparecerem da Terra é que há alguma chance das novas teorias serem aceitas definitivamente. Foi assim com Newton, como exemplifica Kuhn, e se foi com Newton, o quanto será com outros menos importantes?
Estarão fadados a longo exílio, especialmente no Brasil, onde o deslocamento entre teoria e prática dita o perfil da nação periférica, como provou Roberto Schwarz no clássico Um mestre na periferia do capitalismo, livro de leitura obrigatória e que deveria ser debatido em praça pública para implantar no país a noção da democracia das idéias. Seria exatamente ao contrário da atual situação, em que cristalizações do imaginário se digladiam num estado de ruptura permanente, em que tudo fica pior, fruto da vontade jamais alcançada de mudança sem o apoio da verdadeira iluminação das leituras, a que nos transforma pela essência e pelo detalhe e jamais pela imagem que se faz de um livro ou autor. Mas se enganar o povo não tem vocação para o eterno, como determinou Abraham Lincoln, há chances de chegar ao fim o exílio a que foram condenados fatos e versões.
Dois autores, de gerações opostas, nos iluminam pela construção de um resgate profundo do que continua oculto no país do eterno presente. Um é o romance Quando alegre partiste - Melodrama de um delirante golpe militar (Francis, 287 páginas), de Moacir Japiassu, romancista maior (autor de Concerto para paixão e desatino e A Santa do Cabaré), veterano e considerado jornalista que desde os anos 1960 percorreu as redações brasileiras com o brilho do seu talento e a acidez ilustrada da sua escrita. O outro é a biografia 75kg de músculos e fúria - Tarso de Castro, a vida de um dos mais polêmicos jornalistas brasileiros (Editora Planeta, 268 páginas), de Tom Cardoso, representante da nova e brilhante geração de jornalistas que, apesar de todas as dificuldades, se destaca pelo inconformismo e o trabalho duro. Tom é filho de Jary Cardoso, um dos mais importantes jornalistas culturais do país, o profissional que trabalhou várias vezes com Tarso de Castro e é contemporâneo de Japiassu. Nesse enlace de protagonistas, podemos detectar, tanto na ficção quanto na representação histórica (já que a biografia de Tarso escrita por Tom é o concerto breve e demolidor de um tempo que se foi), uma nação interrompida no auge da sua criatividade e grandeza e que deixou marcas, que hoje nos cabe incorporar.
Japiassu recompõe o trajeto de alguns personagens, a maioria militando na imprensa carioca e mineira, que se deparam com o pesadelo: o golpe de 1964, que encerrou a carreira de um Brasil orgulhoso de suas lutas e inaugurou a nação que temos hoje, dividida e violenta, apática e com a soberania ameaçada. A profissão, na época, e antes da sedição, era exercida com as contradições normais de empresas ligadas à sobrevivência econômica, mas a população que a habitava, formada na excelência da escola pública ainda não sucateada, impunha seu estilo por meio da coragem e da teimosia. Já existiam, na época, os grandes jornalistas, que fizeram História e que mantinham a linhagem, mais tarde interrompida, de gerações formadas no front, na escola da máquina de escrever e das ruas, sem as imposições da formação especializada. Eram generalistas talentosos, envolvidos num vendaval de fatos e situações que os empurrava para a tragédia. Mas Japiassu escreve com a liberdade dos criadores. Não compõe um pano de fundo para a História, antes denuncia a contrafação imposta pelo golpe, por meio de citações de trechos publicados na imprensa, que ficou sob mordaça. Cada capítulo é precedido por um pedaço dessa empulhação, o que dá liberdade para o estrategista do texto reverter a situação, pois seu objetivo é estocar a ferida e vê-la sangrar.
Para que isso aconteça, ele é impiedoso com todo mundo. Não libera os jornalistas da época, hoje sob a aura do heroísmo, das iniqüidades comuns do humano, como o vício e a covardia. Mas esse jogo limpo com os personagens o deixa livre para entender a grandeza desses grupos colhidos pelo Mal. Como todo grande romancista, Japiassu não presta tributo ao bom comportamento e sua virulência só nos liberta, antes de nos incomodar. É crua a narração cheia de álcool, tabaco e cocaína, tortura e fuga, humor e desespero. Mas é nesse rio tormentoso que nos lançamos sem nos afogar, para navegar não só na perfeição da obra, como nas revelações liberadas pelo pesadelo. A partir do que ele narra, é possível entender melhor o Brasil que perdemos, mas que ainda pulsa, soberano, no coração dos habitantes vivificados pelo testemunho dos sobreviventes.
Tom Cardoso estoca fundo essa ferida aberta no romance de Japiassu. Seu livro começa em 1968, quando Tarso de Castro, o jornalista fundador do Pasquim, entre outros jornais de radical inovação, irrompe na Última Hora do Rio na coluna Na Hora H, confrontando os personagens da ditadura antes do desfecho do Ato Institucional Nº 5. O carisma de Tarso e o fascínio que exerce em seus contemporâneos são reconstruídos por Tom num texto que Tarso de Castro não só aprovaria, mas provocaria nele uma das suas célebres gargalhadas. Nos detalhes, somos conquistados por revelações surpreendentes: Tarso é o cabeludo que aparece na rua da amante na canção de Roberto Carlos, Detalhes, já que os dois disputavam a mesma mulher; Paulo César Pereio, o ator amigo de Tarso, foi o autor da letra do hino da Legalidade, o movimento que impediu um golpe de Estado em 1961, liderado por Leonel Brizola, e foi definitivo para a carreira de toda uma geração de jornalistas, não só do Rio Grande do Sul; Tarso abandonou a musa de Hollywood, Candice Bergen (depois se arrependeu); o Folhetim, encarte da Folha que duplicou as vendas do jornal em 1977-1978, foi criado por Tarso e Otavio Frias, patrão da Folha, numa mesa do Rodeio, sem o conhecimento do diretor de Redação, Cláudio Abramo, que estava doente; O Panfleto, jornal trabalhista fechado pelo golpe de 64, foi uma pré-estréia, regida por Tarso, do Pasquim, tablóide carioca que chegou a vender mais de 200 mil exemplares por semana, foi esvaziado pela ditadura, mas marcou a imprensa brasileira para sempre.
Os dois livros trabalham a matéria-prima de maneira diferente e em graus variados. Japiassu é o mestre de um texto admirado por talentos como Augusto Nunes (autor do prefácio, que faz o balanço da carreira literária do autor). Tom é um estreante com gana de vencedor, com texto limpo e transparente, que não perde tempo explicando demais, já que confia na inteligência do leitor. Ambos, separados por décadas na certidão de nascimento, nos garantem leitura fundamental para o Brasil, que precisa ser reconstruído em toda a sua grandeza.
RETORNO - 1. É um aniversário e tanto. À meia noite e um minuto, meu irmão Luiz Carlos me liga de Curitiba, onde é renomado professor de Tecnologia de Informação na PUC, com o bordão: "Primeiro eu!". Lisca falou comigo uma hora, relembrando tempos maravilhosos dessa nossa eterna juventude. 2. Mestre Moacir Japiassu me escreve e fico com um nó na garganta: "Consideradíssimo amigo, você faz aniversário e quem ganha presente somos o Tom e eu! Não é justo, acho, mas quem não agarraria e esconderia no peito tal e honroso regalo? Só não mais poderei escondê-lo das invejas do mundo, porque está nas páginas do Diário Catarinense...Como posso agradecer ao consideradíssimo amigo? Falecem-me as palavras, pode crer. É a segunda vez que você comove profundamente este humilde autor, pois a primeira está registrada nas orelhas do livro. Foi magnífica idéia reunir "Quando Alegre..." à biografia do Tarso,que está homenageado na página 228 do romance, tá lembrado? O encontro de Maurício com Brizola e Paulo Schilling se deu na Redação do Panfleto. Muito obrigado, consideradíssimo amigo, por este final de semana que se faz alegre em meio à chuvinha que refresca e ajuda a fertilizar esses palmos de terra que formam o Sítio Maravalha. Receba aquele sempre saudoso e afetuoso abraço do Japi".
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