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1 de agosto de 2005

OS CAPRICHOS DA BOLA


A bola fez o que quis neste fim de semana: chutado por um zagueiro na área, bateu sem querer na cabeça de um atacante adversário e foi para o fundo do gol; quicou antes do goleiro Fabio Costa e entrou, para desmoralizar; no bate e rebate, foi-que-foi e acabou indo no gol mandrake de Roger para o Corinthians contra o Santos. No programa
No Coração do Brasil, da Band, de José Luiz Datena, Felipão lembrou a dura que deu no Ronaldinho que tentava convencer as pessoas sobre o gol impossível no time da Inglaterra na copa de 2002: teria sido intencional, pois viu o goleiro adiantado. Não minta para mim, disse o técnico campeão do mundo, você quis cruzar e a bola entrou. Como o futebol é um mistério, jamais decifrado, arrisco o palpite de que nenhuma das duas versões é correta. A bola aproveitou o impulso dado por Ronaldinho, e em vez de cair na cabeça de um brasileiro, cobriu o goleiro inglês e entrou, em diagonal e em curva. Estava escrito. Era o dia da bola.

COURO - A bola número cinco, de couro, era a glória do meu futebol da infância. Poucos tinham uma, por ser cara. Nenhum pai daria uma bola estalando, quase profissional, para um filho perna de pau. O garoto precisava ter cacife para pedir uma. Ou então, como foi meu caso, o pai poderia ceder em caso de muita insistência, ou para compensar meu longo exílio do futebol (campeonatos importantes no colégio inclusive), devido à asma e alergias perigosas que me jogavam na cama. Foi por isso que num belo fim de outubro cheguei no colégio com o biroço novinho em folha. O dono da bola sempre tem prestígio, pois manda na escalação, na duração do jogo e até mesmo no apito (a cargo dos capitães dos dois times, no tempo em que se dispensavam os árbitros das contendas da várzea). Como sempre fui muito ruim na linha, tendo me especializado no gol por não ter outra opção, vivia me sentindo excluído do que aprontavam os outros, os craques, ou simplesmente os mais velhos. No dia em que cheguei com meu presente, rodeado pela gurizada embevecida, depois de eu ter passado muita cera ao redor dos gomos do couro, vi que se debatiam 22 marmanjos no campo de pedra do Ginásio Santana, o de cima. No exato momento em que adentrei no território próximo, a bola deles sumiu. Vieram então com carinha simpática pedir emprestado a minha. Como sou um cara generoso, deixei que eles levassem para o matadouro minha jóia preciosa, que imediatamente começou a virar uma pasta disforme devido à brutalidade do jogo disputado aos pontapés num campo sem grama.

BRUTALIDADE - Todos deveriam ter um irmão como o Luiz Carlos. Nascido pronto para todas as manhas do ser humano, Luiz Carlos chegou minutos depois e viu, escandalizado, que eu tinha cedido a bola número cinco, a que todo guri queria ter, para os pelotudos que destruíam o caroço com a alegria dos animais soltos. Depois de me xingar devidamente, colocando as mãos na cabeça, Luiz Carlos postou-se na beira da peleja para, na primeira oportunidade, recuperar o patrimônio do irmão. Saiu dizendo tudo que é nome feio, fazendo gestos com a mão que significavam: deixem de ser prevalecidos, vão chutar a bola da véia, essa aqui tem dono. Os caras, para meu espanto, em vez de ir atrás do moleque para apossar-se do que já era deles de direito, arregaram. Luiz Carlos estava tão determinado que ninguém iria tirar a bola dele. Quando chegou perto de mim, me devolveu, apontando os estragos feitos no biroço, que perdia assim seu brilho inicial. Foi uma das suas inúmeras lições, que eu aprendia na marra, nem sempre convencido totalmente. Por muito tempo, Luiz Carlos defendeu-me nas brigas, "tirando a cara por mim", como se dizia. Em casa, brigávamos o tempo todo. Mas ninguém de fora poderia me atacar. Era a honra da família que estava em jogo.

PLUMA - Quando a bola, num chutão, ia parar nos eucaliptos que cercavam o pátio de baixo, quem era escalado para ir buscar? Os menores, claro, os que nunca tinham vez nos torneios. A bola tinha personalidade, era uma só e sofria todos os embates da brigaçada que acabava em urros e pontapés. Hoje são quinhentas bolas colocadas em campo. São tantas, que às vezes ficam duas na disputa. Terceirizaram a bola, lhe tiraram o prestígio, o peso, a personalidade. Marcos, o goleiro do Palmeiras, tem treinado com bola de vôlei. Ele denunciou que as bolas leves são obra dos empresários do futebol que querem faturar alto com os craques artilheiros. Com bola peso pluma, os gols saem com mais facilidade. O difícil é ser goleiro. Tenho visto como Fabio Costa é irregular, como o novo goleiro do Santos tem chances de se firmar, como Danrlei, que já conheceu a glória, consegue ainda permanecer em campo arrostando uma lanterna. O goleiro é o cara que não sabe jogar, por isso presta-se a interceptar as jogadas. Rogério confirma a regra: só é bom de bola parada. Se inventar de driblar, é mais um Higuita. Quanto ao Corinthians, tem acertado porque seus malfeitores, Roger e Tosco Tevez, estão sob controle. Roger é um servidor e, quando necessário, um matador (no sentido futebolístico do termo). Tevez está confinado a alguns lances e não tem puxado o gatilho para o mal. Sabe bater um pênalti, o que é uma grande vantagem. E às vezes consegue dar bons dribles. Mas se os dois degringolarem, seguirem a própria natureza, levam o timão junto, para baixo.

RETORNO - A conferência de Eric Hobsbawn "O desafio da razão: Manifesto para a renovação da História" está reproduzida no La Insignia e é uma aula sobre as tendências historiográficas desde o século 19. A partir desse balanço crítico, o texto aborda as perspectivas que se abrem para o estudo da ação do homem sobre a terra geradas pelas novas descobertas científicas - com destaque para o DNA e as luzes lançadas sobre a evolução da espécie. Como não sou evolucionista e acredito que partimos do zero a cada geração (muita gente precisa se convencer que a terra não é quadrada), discordo das perspectivas e da nova utopia da "história total", mas naveguei com prazer pela viagem que o grande historiador faz no mar de excessos do pós-modernismo e do relativismo. Ele chama a atenção para a retomada da herança marxista nos nossos dias e o interesse crescente sobre essa tema em países como a India. Esse é o tipo de discussão que toma tempo no mundo real.

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