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15 de maio de 2005

A VERDADE PODE BERRAR


Nei Duclós (*)

A delação é a sombra e, muitas vezes, o álibi perfeito do heroismo. Nutre-se do asco que provoca e, cercada pelo mistério, cresce com o tempo. Lança lama sobre biografias enquanto fica polindo a efígie do herói traído e assim legitimado. No cinema, do Zapata de Elia Kazan ao Billy the Kid de Arthur Penn, o delator é a peça chave para a morte gloriosa do herói - e, portanto, para a sua permanência. Dificilmente ele é como o Garganta Profunda do caso Watergate, uma intervenção a favor da Justiça. É mais um instrumento do Mal e com o Mal é punido, como acontece nas vinganças da Máfia.

No romance policial Sottovoce - a morte fala baixo, a delação é a fonte da trama de um autor que jamais abdica dos fantasmas que parecem dele, mas que são de todos nós. A fome de Edgar Vasques é de justiça, jamais saciada num país que finge mudar para tudo permanecer o mesmo. Por isso ele tem o traço rouco e a voz poderosa do inconformismo.

Na Porto Alegre deste livro, o horror se manifesta primeiro no cenário: os edifícios opostos ao casario revelam a ascendência do crime sobre a passividade dos cidadãos; e os espaços públicos envelhecidos acobertam pesadelos da consciência. Manifesta-se também na postura física dos personagens: a testemunha espremida pelos balões do interrogatório, a gigantesca caratonha dos assassinos compondo a fuligem da violência, o rosto do jornalista crispado pela tensão, o olhar pálido da inocência diante do estupro, tudo conspira para criar um clima de delegacia abandonada de subúrbio.

Costurando a investigação, a presença de um personagem do carnaval veneziano. Alguém fantasiado de Sottovoce, duende que aparece na madrugada anunciando a morte por meio de rastros - um enigma, um ditado, uma música - desencadeia uma sucessão de ajustes de contas. Os crimes remetem ao tempo da ditadura civil/militar dos anos 70, quando o excesso de sofrimento amadureceu amargamente uma geração de guerreiros exaustos.

Edgar Vasques faz parte dessa humanidade que, ao denunciar, se exila. Pois parece não ser mais moda lembrar que o Brasil ainda está na mesma situação, numa nova roupagem, com um discurso requentado e o silêncio montando guarda. O criador, com a ira justa, não compactua com o segredo e vai revelando o fio dessa meada disforme que pinga sangue.

Sua pena aponta para a esquizofrenia - mais política do que psicanalítica - que reparte heróis e vilões num mesmo quadro. A palavra deturpada tenta fugir do sussurro da morte, que vem em seu socorro. A reportagem caminha em espiral em direção à memória e o passado, insepulto, assoma nos riscos sujos do dia. A revelação é que o filho do torturado expressa a debilidade mental dos despossuídos à força, enquanto seu antípoda, o filho do delator, assume a carga não resolvida da infância.

Ninguém sai vencedor nesta novela policial gráfica, que é literatura de primeira água. A não ser, é claro, o autor, criador do lúcido faminto Rango. Ele soma à sua galeria de anti-heróis personagens como Parola, o jornalista free-lance que sonha com o duende mascarado jogando a vítima - ele mesmo - no abismo. Representando a palavra como paródia - o jornalismo cercado pelo esquecimento - Parola encarna uma decepção coletiva: quando não há mais perguntas, a certeza ataca no escuro, mascarada para matar. Investigar esse enigma pode levar à descoberta de razões ocultas, transformadas em doença.

O artista/escritor lanceta a ferida aparentemente fechada, pois não acredita em mal incurável. Para ser escutado, ele precisa que a consciência deixe, enfim, de ser surda. A morte - representação da verdade- vai então se revelar pelo berro.

RETORNO - (*) Texto publicado originalmente na revista Bravo!, quando era editada pelo Wagner Carelli, na editora Davila.

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