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19 de abril de 2005

TANGO, O ARGENTINO NEGRO E RADICAL




Não vou deitar falação sobre o tango (debater Carlos Gardel, como disse Raul Seixas), apenas chamar a atenção para o célebre Negro Cele, Celedonio Flores, autor, entre muitas obras-primas, de Mano a Mano, o maior poema de amor do tango e um dos maiores de todos os tempos. Negro aqui não apenas como tratamento carinhoso que lhe dão os argentinos (ou uma parte deles), mas da raça negra mesmo, poetaço de onde jorra fontes generosas de inspiração para outros autores. Desconfio que o longo poema que Chico Buarque fez sobre a mulher que abandona o sambista para ficar na galeria é filho dileto dessa letra. O tango é pura radicalidade, pois introduziu na cultura da nação uma linguagem popular, um universo maldito e marginal e jamais fez concessão para a babaquice dos bons sentimentos e as boas intenções. O tango trabalha pelo avesso, negando o que quer expressar, típico de gente pobre que resiste e que sabe, no fundo, do que somos feitos: de uma vida datada e precária, que nem a arte consola.

CONTUNDÊNCIA - Como não acredito em evolução, nego veementemente que evoluímos do hominídio para o Brad Pitt. Não acho, portanto, que o tango seja algo superado. Ele continua firme e forte, pico de pelo menos duas gerações de gênios, que sintonizaram-se com o seu tempo de forma integral e de lá trouxeram uma obra única e imortal. Astor Piazzola, aquele profundo chato de um só fraseado musical, achou que poderia fazer evoluir o tango. Caiu assim no mesmo erro do ditador Perón, que proibiu o tango e fez com que as letras de Cele fossem desvirtuadas, amenizadas, retiradas de sua contundência. Dizem que o poeta morreu desse desgosto, com apenas 51 anos. Sorte que não precisou ver o que fizeram os evolucionistas do tango, chatos como eles só e que por um tempo viraram moda no eixo Buenos Aires-Paris (não por coincidência, época da ditadura militar braba na Argentina, ou seja, o piazzolismo expressa o que a cultura argentina, modificada e aniquilada, gerou nessa época de trevas). Agora que temos a internet e amigos como Paulo Paiva, que me envia os principais tangos em MP3 e traduzidos para o português, tomo contato com o que diziam realmente as letras do tango. Fui criado escutando Gardel e Luiz Gonzaga, mas só agora descubro a profundidade de uma letra como a de Mano a mano.

MERGULHO - Para começar, jamais soube o que queria dizer Rechiflao (mergulhado) en mi tristeza. De onde vem a tristeza verdadeira, e não melancolia ou banzo, do personagem criado pelo poeta como o narrador do drama? Veio da visão que esse personagem teve da ex-amada, decadente. Esse vislumbre o tortura: hoy te evoco y veo que has sido, en mi pobre vida paria, sólo una buena mujer. Negar o amor, colocar a mulher apenas como algo sem paixão, é uma forma de extrair da situação o profundo fosso em que o poema mergulha, onde o passado é visto com amarga condescendência. O amado evoca como algo perdido o poder que a amante tinha de amar. Atribui tudo ao dinheiro, causa da aproximação (quando eram pobres) e do afastamento (quando ela enriqueceu, ou preferiu os magnatas) entre os dois: Tu presencia de bacana puso calor en mi nido, fuiste buena, consecuente. Yo sé que me has querido como no quisiste a nadie, como no podrás querer. O poema todo desumaniza o objeto de desejo para assim poder consolar-se, mas em vão, o amor é mais forte. São versos demolidores: Se dio el juego de remanche,(houve uma reviravolta) cuando vos, pobre percanta (quando tu, pobre puta) gambeteabas la pobreza(curtias a pobreza ) en la casa de pensión. Hoy sos toda una bacana, la vida te ríe y canta, los morlacos (esmolas) del otario los tirás a la marchanta (jogas na calçada) como juega el gato maula con el mísero ratón.

FINAL - A partir dessa negação, a letra descreve o momento dramático do presente, visto de forma debochada e brutal: Hoy tenés el mate lleno de infelices ilusiones, te engrupieron los otarios, las amigas, el gavión (o espertalhão). La milonga entre magnates (milionários) con sus locas tentaciones donde triunfan y claudican milongueras pretensiones se te ha entrao muy adentro en el pobre corazón. Nada debo agradecerte, mano a mano hemos quedado, no me importa lo que has hecho, lo que hacés, ni lo que harás. Los favores recibidos creo habértelos pagado y si alguna deuda chica (dívida pqequena) sin querer se me ha olvidado, en la cuenta del otario que tenés se la cargás. O jogo de gato e rato expresso na estrofe anterior a esta e o menosprezo sobre o rescaldo do amor são momentos alto da anti-lira. Vamos continuar: Mientras tanto, que tus triunfos, pobres triunfos pasajeros, sean una larga fila de riquezas y placer. Que el bacán que te acamala (o bacana que te sustenta) tenga pesos duraderos, que te abrás de las paradas (que te sustente nas paradas ) con caficios milongueros (com coisas boas), y que digan los muchachos:es una buena mujer. Chegamos então ao grande final, aquele estrofe que faz deste poema o maior de todos: Y mañana cuando seas descolado mueble viejo y no tengas esperanzas en tu pobre corazón; si precisás una ayuda, si te hace falta un consejo, acordate de este amigo que ha de jugarse el pellejo (que vai tirar a própria pele) pa' ayudarte en lo que pueda, cuando llegue la ocasión. Não há perdão, há apenas o amor jamais resolvido. Quem poderá com essa força? Carlos Gardel descobriu o poeta num concurso de poesia. Musicou Mano a mano em parceria com José Razzano em 1918. Uma letra dessas, cantada ainda por cima por Gardel, aí já é covardia. Água, hermanos.

RETORNO - Há uma percepção debochada do racismo na cultura portenha. Parece que não levam a sério chamarem-se uns aos outros de negrito e negrón. O problema é quando a cultura nacional é apropriada pela direita, como aconteceu com o nazismo em relação à inigualável cultura alemã. Do negrito para o macaco é um pulo, mas esse risco todos devem arrostar, senão viraremos todos uns babacas metidos a virtuosos. Agora entendo porque os jogadores do Quilmes caíram para trás quando ouviram a acusação de racista no final do jogo contra o São Paulo. Racismo, fala sério! Acho que temos aí uma nuance complicada que ainda vai ter desdobramentos. Ou nos entendemos com os argentinos, ou a coisa poderá feder. A solução está na fronteira: convivência pacífica, respeitando as diferenças. Estamos todos no fundo do poço. Mano a mano.

Um comentário:

  1. Anônimo5:23 PM

    Quando fui à Argentina pela primeira vez, na década de 60/70, levei um choque ao ouvir o tango "ao vivo", nos botecos suburbanos. O tango é a Argentina e mais: a vida.

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