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23 de abril de 2005

PECADOS NA LINHA DO EQUADOR





Nada sei sobre a crise em Quito, por isso lanço mão de dois textos, nesta edição matinal provisória de sábado do Diário da Fonte. Um é das agências internacionais sobre o sufoco do embaixador brasileiro por lá, já que representamos a desastrada política externa pró- Conselho de Segurança da ONU do presidente Lula. O outro é um artigo que foi publicado pela Folha, coisa que nunca faço, mas desta vez vale a pena.

QUITO (das agências internacionais) - Centenas de manifestantes cercaram e desferiram golpes contra o carro do embaixador brasileiro no Equador, Sérgio Florencio Sobrinho, quando ele tentava deixar a embaixada, onde está refugiado o presidente deposto do país, Lucio Gutiérrez. Segundo informações das agências internacionais, o embaixador se mostrou muito assustado, mas não houve danos pessoais. O automóvel foi cercado, assim que ultrapassou o portão da embaixada, por numerosas pessoas que golpearam a carroceria e os vidros. Diante da fúria da multidão, Florencio, acompanhado de outro funcionário diplomático, desistiu de seguir adiante e ordenou ao motorista que retornasse. A agressão aconteceu apesar de uma dezena de policiais ter rodeado o carro tentando conter os manifestantes, que faziam gestos obscenos e xingavam o embaixador e o presidente Lula pelo fato de o Brasil ter dado asilo a Gutiérrez.

ARTIGO - O EQUADOR E A CRISE SEM FIM
Luiz Alberto Moniz Bandeira (*)

Em 1961, o embaixador do Brasil em Quito, José Jobim, percebeu que existiam no Equador condições propícias para a eclosão de uma revolução, como ocorrera na Bolívia (1952) e em Cuba (1959). A massa do povo equatoriano, composta de índios, cujo status social era o de pária, vivia em "níveis de pauperismo aterradores" e, sem qualquer perspectiva de progresso, não encontraria saída para sua miséria "fora da subversão social", uma vez que a elite demonstrava "impermeabilidade" para compreender que uma situação como aquela não mais podia manter-se. Com efeito, um amplo movimento popular irrompeu, provocando a queda do José Maria Velasco Ibarra, que resistia às pressões dos EUA para romper as relações diplomáticas com Cuba.
A evolução dos acontecimentos no Equador assemelhou-se, de certo modo, ao que ocorrera no Brasil, dois meses antes, agosto de 1961, com a renúncia de Jânio Quadros. A fim de forçar o Equador a romper relações com Cuba, a CIA fomentara a agitação, para desestabilizar o governo de Velasco Ibarra, embora o governo pudesse cair nas mãos do vice-presidente Carlos Arosemena, cujas ligações com a esquerda o tornavam tão indesejável para os EUA quanto João Goulart no Brasil.
Com efeito, foi o que aconteceu. Velasco Ibarra caiu e quando o Congresso confrontou-se com os chefes militares, que queriam impedir que Arosemena assumisse o governo, as forças de esquerda mobilizaram-se e ganharam as ruas em defesa da legalidade. As Forças Armadas cindiram-se. E o resultado não foi o que a CIA e o Pentágono desejavam. Arosemena foi empossado na Presidência.
O encarregado de negócios do Brasil, Lindolfo Leopoldo Collor, em informe ao Itamaraty, comentou que era "flagrante a dívida contraída" pelo governo de Arosemena "com a conspiração castrista e a rebelião esquerdista, que ajudaram a levá-lo ao poder, a preço de sangue". E acrescentou que ele herdara "uma estrutura feudal, um país de riqueza agropecuária presa das flutuações dos preços internacionais, uma sociedade cheia de preconceitos contra a maioria da população de origem indígena, um sistema de trabalho semi-escravo, uma história responsável pela psicologia amargurada e descrente do povo", tornando o Equador um "exemplo de processo econômico e social", que parecia "feito sob receita para ilustrar uma ocasional perfeição de análise marxista".
Arosemena também recalcitrou, para não romper relações com Cuba, e foi deposto pelas Forças Armadas, em 1963. Uma Junta Militar governou o Equador, sem conseguir estabilizar a situação, até 1968, ano em que Velasco Ibarra outra vez se elegeu e conseguiu completar o mandato em 1972. A situação econômica e social do Equador, porém, não mudou muito, desde então. Pelo contrário, agravou-se. O Equador tornou-se mais e mais dependente dos EUA.
Abdala Bucaram, político de Guayaquil, foi eleito presidente pelo Partido Roldosista Ecuatoriano (PRE), em 1996, prometendo reformas econômicas e sociais para romper o poder da oligarquia. Líder populista, personalidade excêntrica, vangloriava-se de ser chamado "El Loco", provocou, no entanto, enorme descontentamento e desencadeou uma onda de protestos, após seis meses de governo, ao anunciar em 1º de dezembro de 1996 o aumento dos preços da água, do gás, da luz e dos telefones. O Congresso, cerca de dois meses depois, aprovou sua destituição por "incapacidade mental", e seu presidente, Fabian Alarcón Rivera, assumiu interinamente o governo. Jamil Mahuad, do Partido da Democracia Popular, e Gustavo Noboa, do Partido Social Cristão, foram eleitos pelo Congresso, em 1998.
Mahuad também não governou muito tempo. Assessorado por economistas argentinos, tratou de dolarizar a economia. Teve então de decretar estado de emergência e mobilizar o Exército a fim de reprimir as intensas manifestações da oposição, apoiadas pelos sindicatos e pela Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador. O Banco Central do Equador aprovou o plano de dolarização em 10 de janeiro 2000, e Mahuad, no dia 15, apresentou-se ao Congresso para defender as leis necessárias à sua implementação. O estado de emergência, contudo, não pôde conter a insurreição dos indígenas (4,2 milhões em uma população de 12 milhões), à qual aderiram os sindicatos e partidos políticos, que exigiam a renúncia de Mahuad, dos deputados e do Judiciário. E, em 21 de janeiro, um grupo de coronéis, liderados por Lucio Gutiérrez, levantou o Exército, em apoio às comunidades indígenas. Mahuad, ao perceber que não mais tinha condições, refugiou-se em uma base militar, embora declarasse que não renunciaria. Os indígenas e os militares ocuparam os edifícios públicos, as sede dos três Poderes em Quito, e Antonio Vargas, líder indígena, proclamou a dissolução do Congresso, bem como da Suprema Corte, anunciou a remoção de Mahuad da Presidência, a formação de um "parlamento popular", e instituiu uma Junta de Salvação Nacional, com a participação de Gutiérrez.
O Conselho Permanente da OEA logo se reuniu para a aplicar sanções previstas pela na cláusula democrática, e os EUA ameaçaram cessar toda a assistência econômica e militar, caso um regime inconstitucional fosse instalado no Equador. A Junta de Salvação Nacional não pôde resistir. Os EUA, o maior parceiro comercial do Equador, absorviam cerca de 39% de suas exportações e forneciam pelo menos um terço de suas importações.
Em tais circunstâncias, os militares sublevados recuaram. A pressão dos EUA compeliu a Junta de Salvação Nacional a dissolver-se e, após intensas negociações entre indígenas, militares e líderes políticos, com a participação dos americanos, o Congresso, em 22 de janeiro, reuniu-se em Guayaquil e reconheceu o vice-presidente Gustavo Noboa como sucessor de Mahuad.
Mais de 30.000 indígenas, que entraram em Quito para reclamar a destituição de Mahuad, voltaram aos seus povoados, nas montanhas, com as mãos vazias. Perderam na mesa das negociações o que haviam ganho nas ruas. Noboa confirmou o projeto de privatizações e efetivou a dolarização da economia, em março de 2000. E o Equador, com a economia dolarizada e o aeroporto de Manta elevado à condição de importante base militar, tornou-se o centro das operações militares dos Estados Unidos na Amazônia. Porém, como o general Charles E. Wilhelm, comandante-em-chefe do Southern Command dos EUA, reconhecera no Senado americano, no Equador como em outras nações situadas na sua área de responsabilidade, a América do Sul, "a democracia e as reformas de livre mercado não trouxeram resultados tangíveis para o povo".
A eleição do coronel Lúcio Gutiérrez para a Presidência havia acendido a esperança de que ele realizasse um governo como Chávez na Venezuela. Ele, porém, acomodou-se. Manteve a mesma política de seus antecessores, e caiu. Haverá outros capítulos.

(*) O cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira é professor emérito da Universidade de Brasília e autor dos livros "As Relações Perigosas: Brasil-Estados Unidos de Collor a Lula, 1990-2004", "Brasil, Argentina e Estados Unidos" e "De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina".

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