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29 de março de 2005

A MAJESTADE EM VISCONTI




Luchino Visconti filmou a decadência de um estilo de vida fundada no direito divino à majestade. Confundem essa catedral envolta na neblina com aristocracia, mas ela pode nascer do povo, como em TerraTrema, das posses e da riqueza, como em Il Gattoppardo, ou da virilidade ferida do proletariado e dos migrantes, como em Rocco e seus irmãos. A majestade encontra um limite, mas deixa os vestígios diante do nosso olhar demolido pela intervenção do Mestre. Estamos perdidos, nos diz ele. Mas antes disso, veja o que posso te mostrar. Numa de suas inúmeras obras-primas, Morte em Veneza, o que finda é a possibilidade de um resgate, de uma salvação. O professor que busca a cura vislumbra a redenção ao entregar-se à radicalidade das diferenças. Não é seu encantamento pela beleza adolescente que está em jogo, mas o limite que encontra na própria grandeza ao descobrir uma porta que o levará para outra vida, longe de suas rotinas, hábitos, percepções, relações. Os personagens de Visconti estão livres para chegar perto dessa porta, mas ela se fecha no último minuto e fica apenas a sinfonia plena de uma cultura que se despede, inadequada diante da realidade que joga o sonho na terra nua. É um cinema que jamais existiu fora desse diretor que nos olha com sua brutal indiferença, mas que nos carrega no colo de uma grandeza que nunca tivemos, mas que sempre, desesperadamente, quisemos encarnar.

BATISMO - De onde nasce essa grandeza? Dos romances inesquecíveis, da literatura genial e eterna de escritores sem igual. Vem da formação aprimorada em colégios seriíssimos, de professores exigentes e cultos. Vem das famílias que cultivavam a cultura. Vem das pressões de um tempo de guerra. Vem de inúmeros cruzamentos, das ciências humanas e exatas, vem das necessidades de espíritos livres, que dobraram o mercado impondo seus trabalhos. Tive o privilégio de ir, por um bom tempo, diariamente ao cinema e seguir todos os geniais cineastas que formaram minha cabeça e meu coração. Visconti é uma descoberta tardia, quando nem a tela pequena consegue diminuir seu gesto. Ver pela primeira vez Claudia Cardinale pelo rosto retorcido das mulheres invejosas e só depois impactar-se com sua aparição no castelo é um momento único do cinema. A dança de uma valsa com Burt Lancaster nos remete a uma certeza: esse cinema majestoso encontrou atores à altura, ou será que os atores ascenderam à genialidade quando foram focados por esse cinema? O que importa é que jamais teremos alguém como Burt e Claudia em cena, rodopiando para sempre no salão do nosso encantamento. Pelo menos nesta vida, nunca sofreremos tanto como em Rocco e a família que se estraçalha na grande cidade. É tão profundo esse cinema, que Glauber Rocha começou a partir dele, com seu Barravento colado a Terratrema. Visconti nos trouxe Glauber, e só isso já basta para colocá-lo entre nossos grandes inspiradores.

GROSSURA - O que temos hoje? Faça uma experiência e compre a Folha de sábado. Gosto de seguir as novidades do mundo literário na Ilustrada. Mas, estava lá. O novo livro do Cadão Volpato (!), o terceiro de mais um Titã (sempre tem um Titã no meio, seja livro, filme, música, história infantil, teatro) e o último de Paulo Coelho (que escreve suas obras em duas semanas, depois de dois anos de reflexão, uau). Na página de esportes, um cartola gordo ilustrava um título sobre bundões. Um colunista diz sobre o jogador Adriano: o sujeito parece um touro premiado. A maior parte dos textos são ilegíveis. Na página de ciência e tecnologia há a frase lapidar entre parênteses: os planetas extra-solares agradecem. Seja isso o que for. Há uma frase que em certa passagem chega a dizer: os efeitos gravitacionais deles sobre elas. Não há informação, há boutades, apelações, grossura e falta total de talento. Na mesma página dupla de Dinheiro, tem títulos com: diz especialista, diz analista e para fundo. Em toda edição, nenhuma migalha de uma reportagem. Por que os jornais vendem cada vez menos? Porque são mal escritos, mal intencionados e estão na mão de vigaristas iletrados, que expulsaram o talento das redações. Essa vigarice seleciona os amigos, os comparsas, os parceiros, e deixa de lado o que está se fazendo de sério no país.

HORROR - Felizmente MadMaria (ou A Vida Sexual de Tony Ramos) chega ao fim. Não deu audiência porque é ruim, não porque o BigBrother (bleargh!) atrapalhou. A única coisa que se salva é a Arósio, linda e talentosa como ninguém. Li e resenhei o romance de Marcio Souza, nos anos 80. É muito bom. A minissérie é uma droga, não porque tenha traído o livro, mas porque é ruim mesmo. Juca Oliveira está ótimo, mas quem agüenta a estética conservadora e retrógrada, como se Glauber Rocha, Nelson pereira dos Santos, Luis Sergio Person jamais tivessem existido. A TV brasileira se especializa em desconstruir todos os avanços da civilização brasileira. É por isso que a TV se dedica tanto ao chapéu americano de cow-boy, à babaquice dos noticiários, aos programas sem sentido, ao horror da mídia fajuta. Mas há exceções. O melhor repórter da TV atualmente é Edney Silvestre. Quero há tempos comentar uma matéria sua sobre gestos populares. A reportagem se desenrolava e de vez em quando dava um break reproduzindo pessoas do povo fazendo gestos. Uma beleza, de autoria desse jornalista de primeira água e excelente autor, como prova seu livro de entrevistas que tive a honra de produzir na W11 Editores. Existe coisa mais estúpida do que o livro dos recordes? Fulano bate o Record de cuspe à distância montado num camelo na Bessarábia Central, de costas.

ARREGLO - Passei a vida escutando que 1930 foi um arreglo das elites. Não foi. Teve ruptura, teve guerra, teve morte, teve tropas por todo o país lutando, com participação popular pesada (só no Rio Grande do Sul, cem mil voluntários se alistaram). A revolução de 1930 mudou o país para melhor. Já 1985 é o verdadeiro arreglo de elites. Oficializou o regime de 1964, instaurado por um golpe de estado de direita, aprofundou a entrega da soberania e anexou novos aliados, como a falsa esquerda democrática (FHC e seus banqueiros emergentes) e o lumpen proletariado, aquela porção sem ideologia e louca por ascensão social vinda das camadas populares (Lula).

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