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20 de janeiro de 2005

PRIMEIRAS LETRAS, PRIMEIROS FILMES


Implicam com a expressão primeiras letras, já que todas elas são as primeiras, e as únicas. Mas letra aí é tudo: beabá, leitura, escrita. Tomei contato com a literatura por meio de um livro escrito por uma inglesa, O Pequeno Lord (Little Lord Fauntleroy, de Frances Hodgson Burnett, como informa o Google), todo ilustrado, colorido, papel lustroso, brilhante, capa dura. Desse livro não lembro de nada, apenas de que foi devorado por mim várias vezes. Leio agora a versão online e descubro que se trata da história de um órfão de pai. Livro infantil que, no primeiro capítulo, trata da morte: eis como era a literatura para crianças antes que a imbecilidade tomasse conta em forma de livrecos ridículos. Mas se o primeiro livro foi um encanto, o primeiro filme foi uma experiência assustadora. Me avisaram que eu iria me assustar com as grandes imagens do Cine Carlos Gomes e eu cumpri a escrita. Saí aos prantos do cinema, antes do filme acabar. Nem sei do que se tratava.

!INFÂNCIA - Levei daniduc um dia para ver Guerra nas Estrelas, de George Lucas, e ele foi colhido pela paixão dessa saga para sempre. Hoje, 20 de janeiro, daniduc completa 31 anos e eu fui o primeiro a vê-lo, com o rosto contraído e reclamando da luz forte do hospital, dando algumas demonstrações de suas queixas com sua voz emergente. De cenho muito carregado, nasceu sério, às duas manhã, no momento em que a chuva despencava na capital capixaba. Estávamos, como sempre, tentando morar perto do mar. Descobri o humor de daniduc quando ele ainda estava no berço. Qualquer boagem que eu fazia ele despencava de tanto rir. De lá saímos depois de um ano, deixando no primogênito a marca do gosto pela praia. É um mistério o que nos arrebata na infância, mas é o que fica para sempre. Fico imaginando o que as crianças devem pensar do mundo quando freqüentam um colégio caindo aos pedaços, com salas detonadas e professores mal pagos. O que pensam ou sentem quando ligam a TV e só vêem porcaria. O que acham das cidades horripilantes cheias de barulho, sujeira e violência. Há uma extrema irresponsabilidade dos adultos no Brasil, país que tem horror à infância, tanto é que dela tiram órgãos, prostituem, matam. O máximo que conseguem produzir é o mercado dos bons sentimentos: melhor fazer capoeira do que ficar na rua roubando, dizem essas gracinhas caridosas que aparecem na TV dando lição de moral. Agora vem o presidente Lula e aterrisa 170 milhões de dólares no meio do ermo para reinaugurar o projeto Rondon, mais um sinal de que o governo dele é continuísmo não apenas de FHC, mas da ditadura instaurada em 1964, pois o Rondon é uma idéia do auge ditatorial. No lugar de levar garotos e garotas de classe média para explicar como a coisa funciona para o pobrerio da periferia do Brasil, precisa trazer as crianças do meio do mato para conhecer o mar. Isso sim seria um projeto de integração. A meninada da selva ou do cerrado viria ensinar boas maneiras para os folgados de classe média e teriam a chance de entrar em contato com a grandeza da divindade salgada.

MEDO - O que fizeram com a obra infantil de Monteiro Lobato (que deslumbrou sucessivas gerações; para mim, Reinações de Narizinho é um dos maiores livros da literatura brasileira de todos os tempos) é mais um ato criminoso da televisão. A Emília é uma patroazinha. O nariz arrebitado serviu de álibi para o destrato com pessoas mais simples. A Dona Benta da Nicete Bruno é um desastre. Nicete e seu marido Goulart são muito precários. A gente sabe que eles estão fingindo o tempo todo. Atuar é fingir, disse um dia Tonia Carrero, mostrando assim explicitamente que nada entende do seu ofício. Atuar é ser de fato. Atuamos o tempo todo. Nos colocaram um nome e encaramos esse batismo seriamente. No fundo, somos criaturas anônimas, saídas do ventre da terra. Nada nos garante que somos o nome que nos deram. Mas já que esse é o jogo, a arte da atuação serve-se dele fartamente. Criar um andar, inventar um pensamento à parte que inspira a fala, assumir o papel integralmente, nada disso tem a ver com fingimento. Sabemos quando o ator é ruim quando ele dá aquelas respiradinhas rápidas antes da fala . Nisso se especializam pessoas como Tony Ramos. Elas fungam o ar para emitir o texto. Quem viu Renato Borghi em ação no Oficina (que agora, parece, entrará em nova e fulgurante fase) ou Stenio Garcia em Cemitério de Automóveis, ou Othon Bastos no filme São Bernardo, de Leon Hirzmann, sabe do que se trata. Atuar é virar a criatura que aparece em cena para nos assustar. Tenho medo até do Buster Keaton.

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