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15 de dezembro de 2004

A PALAVRA FAZ O BALANÇO

Curvo meu rosto em direção à água transparente e nela vejo o vidro de uma vida que não dá folga. Mexo na imagem liquida usando um pequeno graveto, a palavra que me socorre, e o que vejo é redemoinho, o tempo se articulando em círculos e se desdobrando ao infinito. Coloco de um lado o ano de 2004 e do outro ofício que abracei desde criança. O Ano do Livro dobra diante do peso do que foi escrito aqui neste espaço, semente de algumas publicações que virão à tona. O verão me expulsa da tv, do rádio, do jornal, do micro. Há coisas por fazer, há projetos para valer. Nos últimos dias, deixei a crônica aqui paralisada e me dediquei a uma avalanche diferente, que em 2005 dará as caras com toda a força. Preparem-se. Já existe um princípio de vento que se arma no pampa. Os potros estão mais ariscos do que nunca.

CENA - Tento chegar no mar e deposito o carro embaixo de generosa sombra. Vejo então de repente, surgindo do nada, e aproximando-se de ré em desabalada carreira, um desses carros portentosos, meio jipe, meio caminhonete, meio carro de luxo, que se planta bem na minha frente. Parecia um recado: como ousas turvar a sombra que deveria ser minha? Desce então o sujeito e abre a traseira com estardalhaço. Enquanto timidamente passo um protetor solar antes de me arriscar no solaço de dezembro, o cara se arma de cadeiras, guarda-sóis, espeluncas variadas, fazendo grandes gestos de domínio de território. Desço então do carro e me dirijo á divindade salgada, que está feliz com a chegada do verão. Chego na areia e dou uns mergulhos, quase na beira, pois qualquer onda para mim é um aviso. Não é que o sujeito está perto, passando agora fragorosamente seu protetor solar e depois palmilhando a areia como se fosse sua fazenda? Penso: besteira minha, devem ser meus miolos torrando neste sol das dez da manhã. Entro de novo na água espalhando os conflitos da mente e jogando tudo para dentro da espuma e volto para ir embora (fico pouco, para não abusar da pele, já tão castigada em décadas de exposição). Pego a pequena trilha de volta e quem vem ao meu encalço? O sujeito, desta vez pronto para finalmente tomar posse da sombra refrescante, que deveria cobrir o carro dele e não o meu, intruso desta vida tão demarcada em funções e personagens.

PESADELO - Me convenço então que não é besteira minha, o cara realmente encanou. Tinha deixado mulher e filho na praia e vinha atrás de mim, a passo lento, para ver meus movimentos. Decido então dar uma gambeta. Me dirijo para o lado oposto onde estava estacionado. Como fui convicto em direção à montanha mais próxima, o mosca se tocou e voltou para seu acampamento. Não sei se pegou a sombra depois que saí de lá. Mas é assim o território que palmilhamos: os outros sempre têm a preferência e você, cidadão do mundo, é apenas um obstáculo que deve ser ignorado, eliminado, atropelado. Alvo da hostilidade, me pergunto: tudo isso irá explodir, como prevejo, ou já está explodindo e eu ainda não acordei para a grandiosidade do pesadelo? Parece ceninha de privilegiados disputando bobagens. Mas é apenas um sintoma: a de que não existe mais margem de convivência. Nada mais se compartilha. A paciência e a gentileza acabaram. Quem é você? Quem mandou vir para cá? Só depois que liguei o carro descobri que a placa era do Paraguay. Mas poderia ser de qualquer lugar. A culpa, claro, foi minha. Primeiro, por ter estacionado à sombra. E, segundo, porque não cedi o lugar quando ia embora. Sou o pesadelo do sujeito que me abordou.

CARTEIRA - Lembro de outra cena, desta vez dentro do cinema, há uns 30 anos. Chego atrasado à sessão e vou sentar no escuro. Sinto que embaixo de mim está portentosa carteira. Pego na mão, olho em volta, mas o pessoal da sessão anterior já tinha ido embora. Espero mais alguns minutos, sempre pronto a fazer a devolução. Como não vem ninguém, a curiosidade me leva até o banheiro. Queria saber do que se tratava. Lá encontro tudo: documentos e uma nota preta, grana para dedéu. Muito duro, como sempre, pensei: a pessoa perdeu, alguém irá achar aqui. Deixei então no banheiro, mais precisamente a carteira com quase tudo, no vasto cesto de papéis usados para limpar a mão. Colocando a dinheirama no bolso, voltei para o meu lugar. E repente, me caiu a ficha: eu tinha roubado a grana! Católico fervoroso, ético de auto-falante, voltei ao local do crime e por sorte lá estava, pobrezinha, a carteira misturada a vasta papelama. Coloquei o dinheiro no lugar e voltei, mais aliviado, mas agora preocupado, pois poderiam pensar que eu tinha surripiado tudo aquilo. Com medo de ser preso por estar com o objeto do outro no bolso, ouço então vozes ansiosas. Três pessoas voltaram e uma delas perguntava desesperada pela carteira. Levantei-me, e magnânimo, devolvi. A dona do objeto perdido vai direto ao conteúdo e verifica que está tudo lá. Se emociona com minha decência e honestidade. Depois, me segreda que era todo o salário dela e que jamais poderia me agradecer o suficiente pelo bem que fiz. Ladrão que fui, saí culpado, mas aliviado com o desfecho da cena. Quem me acompanhava teve o desplante de me tirar um sarro, dizendo que eu era muito trouxa. É complicado: fui metido a esperto por alguns minutos, medroso o tempo todo e honesto ao mesmo tempo. No conflito humano, saiu vencendo a solidariedade. É o destino. Mesmo caindo na tentação, ainda é possível se redimir. Ou o que fiz (e remendei) foi imperdoável? Graças a Deus não nasci na terra de Clint Eastwood.

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