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2 de dezembro de 2004

ESCREVER COM LIBERDADE

A Internet rompeu o cerco e hoje se escreve livremente pela rede afora. Numa entrevista lapidar sobre o cruzamento entre literatura e internet, o escritor Urariano Mota explica, com a lucidez de um escritor livre e a coragem de um pensador brasileiro, a extraordinária diversidade que hoje campeia pelos computadores. São palavras que quero destacar hoje no Diário da Fonte, que tem sido abraçado pelos seus leitores, sintonia que me enche de força para novas edições. E a seguir, outro exemplo de texto escrito com liberdade, um trecho das memórias de Virson Holderbaum, onde emerge seu inusitado encontro, aos 16 anos, com Leonel Brizola:

BAILES, FESTAS, ROLETAS, PALANQUES

Autor: Virson Holderbaum

"Dançar fazia parte do chamado traquejo social, principalmente nas pequenas e médias cidades do interior, desde que eu me vi rapaz. O conceito adolescente e jovem, carimbado pela publicidade, veio mais tarde. E como as cidadezinhas imitavam os modos da capital, baile era o que não faltava nos fins-de-semana, sem falar nos momentos culminantes do soçaite festeiro: carnaval, páscoa e virada do ano.
Em Garibaldi, onde morei durante o período ginasial, os bailes se restringiam aquelas três datas nos dois clubes sociais da cidade. Conservadora, recatada, rural e religiosa, a pequena classe média das cidades serranas não era muito chegada ao mundano.

Em Carlos Barbosa, onde minha família morou de 51 a 53, festas só de igreja ou casamento. Assisti apenas a uma grande festa comunitária profana, que foram os 30 anos de fundação do Serrano Futebol Clube, em 1952.
Toda a população compareceu a um imenso churrasco assado em longas valas cavadas ao lado do campo de futebol, onde vi jogar pela primeira vez o time juvenil do Internacional de Porto Alegre, recheado por alguns cobrões que nos anos seguintes seriam titulares de um time histórico: Florindo, Oreco, Paulinho, Salvador, Odorico, Luizinho, Bodinho e Jerônimo. O jogo comemorativo terminou 7x4 para o Colorado e até então eu nunca tinha visto um jogo de futebol ser disputado com tantas alternâncias no marcador. Esse foi o grande jogo da minha infância.

Em Garibaldi conheci a vertigem dos bailes de carnaval dos adultos, a embriaguez do lança-perfume. Éramos, eu e minha turma do ginásio - Jorge Costa, Roberto Marcon, Fernando Jung, Ivo Mânica, Luiz Galina, Norberto Trúccolo - menores de 18 e portanto, tínhamos o acesso negado aos bailes noturnos de carnaval. Mas sempre dávamos um jeito de furar a vigilância dos porteiros e acabávamos entrando na folia.
Do meu primeiro baile infantil ( morávamos em Carazinho ) tenho a lembrança amarga de ter levado uma surra ao chegar em casa, tarde da noite, isto é, depois das oito, contrariando determinação paterna de que eu deveria voltar para casa antes da noite, mesmo que o baile continuasse. Não resisti. Fui sozinho, vestido de palhaço, fantasia costurada na máquina Singer de dona Josefina, minha mãe - ao baile infantil do domingo à tarde. O baile acabou às seis da tarde e eu não quis nem saber. Me enturmei com alguns meninos e saí pela noite. Quando me dei conta, a noite já ia alta. Ao chegar em casa, a cinta do seu Arno me aguardava. Mas valeu a pena. O gosto do carnaval fortaleceu meu espírito lúdico e superou a mágoa da surra. Evoé, Momo.

Foi em Carazinho, na campanha das eleições de 1950, que escutei os primeiros discursos de palanque eleitoral. E também a primeira vez que vi Getulio Vargas em pessoa - primeira e única vez.
Era num campo aberto, havia centenas, talvez milhares de pessoas, cheiro de churrasco no ar, Getulio estava sentado num banco de madeira comprido, na beira de uma mesa de campanha, com muita gente ao lado. Eu estava com meu pai, getulista e trabalhista entusiasta e me lembro que não conseguimos chegar perto do homem.
Então meu pai me levantou e me colocou sentado em seus ombros, de cadeirinha. Getulio vestia um terno branco com gravata, usava óculos escuros. Gritavam o nome dele e eu gritei também. De vez em quando ele olhava na direção onde estávamos e acenava com a mão.
Em 58 conheci Brizola pessoalmente em Garibaldi, num comício no centro da cidade. Meu pai era do diretório municipal do PTB e insistia que eu devia conhecer e me apresentar ao homem.
- Vai lá e diz: estou contigo, Leonel!
Andava pelos 16 anos, estava de visita à família nas férias de julho, mas meus interesses ainda não incluiam a política. Além disso, o tom impositivo das decisões do meu pai já começava a me causar uma inquietação constante e um nervosismo que eu mal conseguia disfarçar.
Era inicio da noite, um grande foguetório recepcionou a caravana, Brizola desembarca do carro na frente do diretório, todos querem apertar sua mão. Meu pai me arrasta pela multidão, passa na frente de alguns correligionários mais deslumbrados e me coloca de frente para o homem e num tom da maior intimidade - não faço a menor idéia se meu pai tinha alguma chegança no líder, pelo menos até então - enlaça a cintura de Leonel Brizola, exclamando: Leonel, quero te apresentar meu filho mais velho.
Enquanto me apertava a mão com força, Brizola falou alguma coisa que não consegui ouvir devido ao vozerio e ao alvoroço da sala apertada e cheia de gente. No momento seguinte uma pequena multidão já arrastava o homem para fora da sala de onde foi direto para uma sacada do segundo piso do prédio.
Durante todo o comício meu pai não arredou pé da sacada, gritando de vez em quando apoiado e muito bem, Brizola. Naquela eleição Brizola ganhou com uma vantagem de mais de duzentos mil votos sobre o coronel Walter Peracchi de Barcellos. E meu pai ganhou uma pequena fortuna apostando com alguns amigos adversários políticos."

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