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18 de novembro de 2004

LEITURA DE ELEVADOR

Agora que o calor começa a aumentar, os livros não são mais escondidos debaixo de grossos casacos. As roupas são leves, portanto o material fica bem guardado num daqueles compartimentos que existem no elevador. Mais precisamente onde se guarda o telefone de emergência. A ascensorista então tira um exemplar e mostra para o passageiro cúmplice, que lhe pergunta sobre a atual leitura. Ela mostra uma das suas jóias todas manuseadas, de folhas amarelas. É certo que ela adquire seus objetos de desejo em sebos, em revistarias com baús de ossos, onde se pode garimpar preciosidades. Ela lê escondido entre um andar e outro, jamais no térreo, lugar de rigorosa fiscalização.

ADVERTÊNCIA - Nunca vi seu algoz, nem sei quem é que a proíbe de entregar-se à leitura em pleno expediente. Mas deve ser gente pesada, com poder de demiti-la. Até hoje, pelo que sei, não foi flagrada. Possivelmente só uma vez, quando foi advertida de que ler livros é algo perigoso para uma ascensorista, pois desvia sua atenção do serviço, muito mais importante. Mas vamos imaginar as amarras a que é submetida uma pessoa sentada, em posição de sentido, sempre atenta a todos os passageiros e andares, pronta para retribuir um obrigado, a avisar se sobe ou desce, pois os sinais luminosos e os barulhos típicos não fazem a cabeça dos cidadãos de uma cultura ágrafa, que só entendem comandos verbais. Se o sinal verde ou vermelho aparecer e um grande plim estourar nos seus ouvidos, eles ficam na mesma. Mas se ouvirem a palavra certa, então tudo fica compreensível. Ela então pacientemente avisa a direção do seu veículo, enfrentando toda espécie de mal-estar, pois há impaciência demais num prédio de 11 andares e que é servido por apenas dois elevadores. Ela dribla todos esses obstáculos e consegue desenvolver uma tática de leitura impressionante. Lê rapidamente um parágrafo ou metade dele enquanto faz uma viagem de ida e volta, sem jamais descurar do seu ofício, que pela sua monotonia clássica, pelo espaço confinado e sem janelas, foi feito para enlouquecer quem fica nele por dias e semanas e meses e anos, ganhando um salário miserável no país do subemprego. Ela poderia ser funcionária de uma biblioteca, se bibliotecas houvessem. Poderia cuidar de sua paixão, os livros, oito horas por dia e ainda teria um acervo disponível para ler o dia todo e talvez à noite.

ROMANTISMO - A ascensorista que lê compulsivamente tem uma preferência: histórias românticas. Vislumbro algumas capas que exibem bailes do século 19, com galantes cavalheiros enlaçando gentis senhoritas. Mas não é essa apenas sua leitura. Ela ousa num trama mais explícito de espionagem, erotismo e suspense, e não teme grossura nenhuma de livro algum, pois a tudo devora sem piedade. Quando abriu a portinhola do telefone, vi que tinha uns quatro volumes apertados dentro. Lembrei o clássico filme Faherenheit 451, de François Truffaut, em que os livros eram impiedosamente queimados pelos bombeiros, investidos num trabalho pelo avesso, pois em vez de apagar, punham fogo. Quando o herói do filme deu-se conta que fazia parte de uma sistemática obra de demolição cultural, para que as pessoas ficassem à mercê da manipulação via televisão, ele então começou a estocar livros nos armários, embaixo da cama, no forro, nos vãos existentes das luminárias. Quando foi descoberto, fugiu para um lugar secreto, onde velhos leitores ditavam livros de memória para aprendizes. Era a forma de guardar um livro na cabeça, pois dava-se como certa a destruição total de todas a bibliotecas. Num pesadelo de fiscalização total via sistema integrado audiovisual, ele foge em direção à liberdade, para o território em que foi confinado, longe do terror anti-livro.

FINAL FELIZ - A ascensorista que lê escondido enquanto trabalha é real e não posso dizer seu nome porque não sei nem perguntei, e também porque preciso preservar sua identidade. Ela poderá ser demitida se for descoberta. E assim perderá seu único emprego que conseguiu neste deserto em que se transformou o país onde o fundamentalismo, o obscurantismo e o fanatismo avançam rapidamente, em rede, por todos os cantos.O mais grave do insucesso da falsa democracia em que vivemos é que ela demole todas as esperanças da população numa vida democrática. Em massa, as pessoas voltam-se para as certezas graníticas, já que não querem apostar na diversidade, na dúvida, no encantamento de estar vivo, emocionar-se com uma história escrita pelo talento e impressa num produto que pode correr de mão em mão e acabar fechado num pequeno espaço de um elevador. A ascensorista gosta de ler. Isso dribla a repressão, ela se sente triunfante com seu mergulho diário na literatura que adora. Eu sigo seu paciente trabalho de ocultamento e torço por ela. Se um dia alguma tropa invadir o recinto para dar o flagrante e levá-la presa, ameaçando queimar seus livros, saberei que a hora chegou. O livro que vou decorar precisa ser curto, pois sofro de limitação de memória. Talvez Lorca e seu Llanto para Ignácio Sanchez Mejia (vete Ignácio, duerme, vuela, reposa/ también se muere el mar). Talvez aqueles sonetos do poeta inglês que a certa altura diz: a um dia de verão não posso comparar-te/ pois sempre e a toda hora és muito mais amável. Gostaria de saber qual livro a ascensorista iria decorar. Possivelmente uma história de final feliz, que a leve para longe num cavalo branco.

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