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28 de setembro de 2004

A USURA DAS IDÉIAS


Fonte no alto da montanha que forma córregos em direção aos rios e ao mar é a imagem mais verdadeira do que podemos fazer brotar todos os dias. As idéias são a corrente que seguem seu caminho por força da gravidade. Não se pode admitir, diante dessa metáfora, uma visão mesquinha do debate, um apropriar-se permanente do que nasce do Outro, uma vontade de clonar sem dar crédito, um enterrar vivo que a todos enterra. Como a moeda, que precisa de consenso da percepção de todos para que o valor a ela atribuído funcione, o pensamento também depende de um assentimento geral em relação às origens do que é dito e escrito. Senão haverá concentração excessiva em alguns medalhões carimbados e a cultura ficará restrita ao que está no mapa e jamais ao que realmente existe.

MARATONA - Revi o filme iraniano Filhos do Paraiso (1997, dirigido por Majid Majidi) sobre a menina que dividia o tênis com o irmão. Fiquei impressionado com uma coisa: a ligação entre o filme e as Olimpíadas de Atenas. Vanderlei Cordeiro de Lima queria chegar ao primeiro lugar, foi empurrado, se desvencilhou, lutou e chegou em terceiro. O menino do filme queria chegar em terceiro lugar, porque essa posição garantia o que mais cobiçava, um tênis novo. Quando estava no controle da situação, garantindo seu objetivo, foi empurrado. Caiu, conseguiu se levantar e fez tanta força que acabou em primeiro lugar, para o seu desespero, pois vencer significava ganhar uma taça e não um tênis. Vanderlei tornou-se vitorioso ao ser empurrado para o terceiro lugar. O menino sentiu-se derrotado ao ganhar a maratona. As coincidências e cruzamentos entre duas histórias, uma de ficção e outra real, nos carrega para o mundo das representações. Os dois eventos seguem roteiros pré-determinados, na ficção até o seu final, e na a realidade até o momento em que o maratonista é empurrado para fora da pista. O que Vanderlei fez foi improvisar e perdeu saindo-se vitorioso. O que o menino fez foi seguir o roteiro e venceu sentindo-se derrotado. O que surpreende é a capacidade do cineasta de imaginar o que poderia ser real, e a força de Vanderlei que consegue nos fazer ver o filme de outra maneira. O filme, que era datado, visto e sabido, se transforma. A corrida nas Olimpíadas, que estava sacramentada com todas as letras como a apoteose do evento, tornou-se outra coisa. A criação a tudo contamina, como a fonte que desce da montanha e banha nosso sonho exausto, mas ainda vivo.

RESGATE - Desconheço o destino do que coloco aqui, a não ser por alguns retornos, todos eles gratificantes. Mas costumo fazer um balanço de tudo o que é criado neste espaço e que um dia vai gerar livros, para que as bibliotecas abracem esta vivência online. Posso garantir que são abslotumente originais algumas idéias lançadas neste Diário. Uma delas é esta: Para que o país continue sendo saqueado, a linguagem precisa se deslocar da nacionalidade, portanto, do sentido. Esse é o papel da literatura que se consolida a partir da chamada globalização, ou da entrega do Brasil aos estrangeiros (30/08/04). Outra: A invenção literária permanente costuma refletir o desespero, pois é do caos que ela trata, postura gerada pelo desligamento dos cânones. Vemos isso em Kafka, para pegar o exemplo mais notório. Mas o narrador que é persona do autor diante da indiferença e brutalidade do mundo, é obrigado a reconstruir a linguagem numa nova ordenação do caos. O resultado é uma narrativa sinistra, que faz parte do desencanto econômico e político da Europa que gerou a barbárie de duas guerras. Esse parece ser o personagem favorito da literatura brasileira de hoje. O viajante de João Gilberto Noll em vários dos seus livros, o pesquisador do romance Fantasma, de José Castello, o detetive Cid Espigão de Tabajara Ruas são agentes dessa reordenação da linguagem que veio á tona depois de assassinada. Isso se chama liberdade, mas também está profundamente ligado à ditadura que nos surpreendeu, criou e ainda nos mantém numa espiral de insônia. (14/ 9). O link entre John Reed e Chaplin, entre outras idéias, fazem deste espaço uma fonte brasileira de idéias para uso geral, desde que se dê nome à autoria. Há uma convivência forçada de universos paralelos, que ao não se tocarem provocam faíscas de sofrimento. Isso cria um ambiente estranho: jamais reivindique nada, pois te receberão com um sorrisinho maroto, como se você fosse um mendigo na fartura de uma festa a que não foi convidado. Citar sempre, citar todos, citar até o osso: isso sim é que faz bem. Não dói nem tira lasca.

RETORNO - Virson Holderbaum me envia mais um capítulo de suas memórias, literatura de fonte limpíssima, única na construção de uma visão original do Mundo Perdido (anos 40 e 50). Zelia Leal me envia generoso e-mail e conta história terrível de preconceito na grande mídia. Elisa Santos agradece a referência a ela aqui no DF e retira-se para merecida aposentadoria. Camila, estudante de Direito de Lajeado, RS, troca mensagens comigo sobre a ligação entre Weber e Getúlio Vargas. Recebo Rascunho de setembro que traz Noll na capa. E quando aportam nos cinemas os filmes com Miguel Ramos?

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