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7 de setembro de 2004
O PUXÃO DA PRIMAVERA
Fico em frente ao passo do pássaro praiano. Ele tem aquele movimento que parece ser monitorado por flashes, com as pernas andando para todos os lados enquanto o bico enxerga o que jamais veremos. A cabeça gira e seus olhos não se importam comigo. O que chama a atenção da criatura é uma sombra, vizinha ao sol que tenta grudar na praia, mas é empurrado pelo vento. O brilho intenso na areia é a manifestação de um deus desconhecido. Esse contraste intrigante ébano-ouro atrai o bico arisco, que se aproxima para puxar o risco negro, limite da sombra debruçada sobre a luz. Mas ao experimentar a resistência daquele material, resolve soltar tudo, fazendo o lençol escuro voltar ao local de origem.
CORAÇÃO - Descobri esse deus que não revela o nome ao visitar o que devia ser um por- de-sol. O inverno ia alto e o chumbo do fim do dia fechava o céu num tom decisivo. Então, numa brecha acima do último morro, brilhou intensamente a presença dessa divindade, a querer nos mostrar a sua força, a nos dizer que não iria dormir naquela hora e não obedecia aos ditames do tempo e das estações. Descobri que ele iluminava o granito do morro em frente, de contornos majestosos, resíduos de uma época assombrosa, que aqui existiu antes que viéssemos nos refugiar com nossas vestes rotas, nosso semblante caído, nossos ombros exaustos, nosso coração ainda esperançoso. Tudo foi construído pelos poderes daquelas pessoas que nem eram humanas e nem podem agora se revelar em sonhos, a não ser que ouçamos seus passos nas noites sem fim de vento sul. Querem saber o que pega em Floripa, nome próprio que vem de flor. O que pega é um inverno intenso, que congela a maresia. De repente, às cinco da tarde, cai vertiginosamente a noite, para sempre. Tínhamos planos, mas vamos nos recolher junto com as corujas, empalhados que somos diante dos vidros luminosos que são as janelas de nossa alma torcida em espirais. No dia seguinte, participo da vida coletiva da cidade espalhada em praias, morros, ruas antigas, avenidas limpíssimas. Há pressa e anonimato na capital que cresce. Os edifícios, da janela onde trabalho, escondem o mar e possuem o brilho futurista da ficções da minha infância. Vejo Comando Cody vestir sua roupa metálica, seu capacete tecnológico, depois de receber uma mensagem transmitida por um botão no seu peito. Ele voa e quem ouviu falar em Comando Cody? O vôo mais recente que fiz foi para Sampa, nome próprio que veio da Bahia.
COLÉGIO - Cruz de prata, pano preto sobre o chão de mármore: os padres entoam na hora da ave-maria a soberba queda da noite. Eles deslizam com seu cantochão, sua reza infinita que ecoa em mim até hoje. O colégio em frente é mal assombrado. Lá estão os ex-alunos a sentir saudades. Lá estou eu de cabelinho engomado, camiseta azul e amarela do Santana, morrendo de medo do primeiro dia de aula, com os olhos grandes como os de um pequeno coelho branco. Em volta de mim aquele monte de caras, de todas as idades, a impor presenças. Abro o caderno e cheiro o livro novo. Minha caneta tinteiro, meu lápis e borracha, minha carteira que tinha tampa. Eram mais de 50 alunos numa sala de aula. Distribuem as cadernetas. Teremos avaliação todas as semanas. Cada dever feito conta pontos, a soma dos pontos te dá uma classificação. Comportamento e aplicação fazem parte do sistema. Se você tirar dez nesses dois itens, ganhará um diploma no fim do ano. Todos me olham. Nunca gostei de ser observado. No pré-primário, sentava num canto, numa mesa oval, que abraçava com meus longos braços finos. No pré, cheguei atrasado no primeiro dia. Todos faziam barulho, numa brincadeira coletiva. Pararam de repente mal coloquei o pé na porta. Fizeram súbito silêncio. Fui para o canto e só saí dali no ano seguinte, quando a professora decidiu que eu não seria mais aquele cara recluso. No Santana, entrei na multidão. Fazíamos fila antes de entrar. Era março, era abril, era maio. A vida era uma promessa luminosa. Entrávamos e rezávamos. Depois, estudos, quatro aulas com intervalos. Latim, francês, inglês, História, Português, Trabalhos Manuais. O professor dizia: de pé quem está conversando. E quem estava conversando, ficava de pé. Juro.
SOMOS - Quando montaram a banda, fui tocar pífaro, depois clarim. Usávamos uniformes azuis com penacho no chapéu. Íamos para as cidades vizinhas e as meninas ficavam encantadas. Quem pode com tanta lembrança? O tempo puxa a sombra do inverno que nos deixava de cama. Com seu bico afiado, o tempo não largava a sombra mais, até o inverno ir embora. Vinha então setembro e marchávamos. Quando chegava outubro, éramos outras pessoas. Éramos as crianças felizes daquele país soberano. Minha mãe me esperava na porta. Eu chegava em casa, cheio de amigos. Falávamos de meninas, de pássaros, de futebol. Éramos então, como sempre somos, eternos. Hopje visito o mar, ainda frio, da primavera. Chegam as pessoas cercadas por edifícios. Comando Cody, herói metálico, os trouxe. Eles são os brasileiros confinados quem fazem a primeira visita deste início de temporada. O Brasil, com seu mar, seus morros, seu céu, abraça a todos. O Brasil continua aqui, onde mora a Pátria.
RETORNO - Enjôo Soares veste seu serviçal garçon (ele é tratado assim) de padre e dá um susto mortal no maratonista Vanderlei. Pegou mal, claro. Enjôo também interrompeu Mino Carta, que se empolgava com uma história do jornalismo sindical. 2. Jânio de Freitas, que foi preciso na segunda-feira ao chamar esse governo de farsante total, pisou na bola na terça ao dizer que o rompimento com Portugal foi uma ação diplomática e não militar e que as ações militares da Independência não tiveram tanta importância assim. Consolida assim a tese furada da separação incruenta. 3. Eliane Catanhede diz na terça o que colocamos aqui há alguns dias, sobre a diferença entre patriotismo e patriotada. 4. O falso crescimento econômico não deve ser usado para patriotadas e vitórias eleitorais. Isso já foi feito na outra ditadura.
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