A ignorância é um eterno latifúndio que cria estranho gado, composto dos saberes que nos alimentam depois de passarem pelo matadouro da divulgação. Tudo o que é fonte tem uma tampa de poço que lhe tolhe a vocação de corredeira. Vivemos no pântano do esquecimento e pensamos numa coisa só: como comprar a passagem que nos tire dessa estância, em que os proprietários sentam nas grandes varandas a olhar a multidão debruçada nas cercas da criação. De vez em quando alguém corta os fios eletrificados. Mas ele não recebe apoio de ninguém. A massa está hipnotizada pelo susto de um milhão de gatilhos que a mídia aponta sobre ela. A única sombra sob essa fornalha de horror é o livro de um autor clássico, o filme perdido, a faísca do talento, insistente, que nos incendeia quando menos esperamos.
CRUELDADE - Dispensei a TV a cabo, revoltado com os preços, a interminável propaganda, o repeteco de filmes e programas, a perda geral de tempo. Dou uns pitacos na TV aberta e fico escandalizado. Filmes velhos e novos servem apenas para treinar o telespectador na crueldade. Ontem, um soldado arrancava o dedo de uma velha, com uma faca. Depois chutava uma grávida. Tudo isso servia de motivo para o mocinho revidar. Inúmeros filmes começam sempre da mesma forma: um comando vestido de negro (como os matadores de criança da escola russa) faz algo inominável num prédio, matando friamente os vigias e explodindo tudo no final da ação. Claro que isso, segundo os chamados especialistas, não tem nada a ver com a violência crescente na realidade. Ao contrário, tem tudo a ver: a televisão ensina a matar com requintes de maldade. E os atores se prestam a esse tipo de bandidagem. Ontem no SBT foi ao ar a Entrevista com o vampiro, em que Tom Cruise finca os dentes em Brad Pitt. Isso torna explícito o objetivo dos donos da mídia e do poder: transformar todo mundo em cordeirinho assustado e negar totalmente qualquer nesga de cultura, que é a única que realmente liberta. Quando há alguma chance de se disseminar um pouco de conhecimento, vem aquela avalanche de besteiras, como vimos nas Olimpíadas, onde a pobre da cultura grega serviu de repasto para os infiéis do conhecimento. Vejo também uma tendência notória: ao erradicarem a música de qualidade de todos os espaços da televisão, vende-se caro um trechinho de bossa nova ou jazz em algum comercial. O recado é essa: querem qualidade? Enriqueçam, paguem caro por aquilo que lhe negamos. Pois se você estiver bem rico, tanto faz que consuma cultura, estará preso igualmente em nossas garras. O grande perigo é soltar o gado do saber no meio da multidão. Eles, os donos do poder, morrem de medo disso.
FILIGRANAS - Nos livros é a mesma coisa. Está chegando a tendência de destruir obras clássicas com versões ditas populares. Ou transformar um grande livro do passado numa filigrana fresca. Ou usar a cultura como álibi para algo ligeiro e vazio. O que se salva no panorama livreiro são os historiadores, que estão indo atrás de muito mistério, de muito enigma, de muita coisa não resolvida. Na literatura, sofremos de pobreza endêmica. A linguagem literária serve ao poder, pois é deslocada da realidade, é pura invencionice de linguagem. Autores fingem que possuem um outro rosto. Poetas patinam sobre sacadas interessantinhas. Da literatura para a auto-ajuda é um passo. Por isso vemos como autores que escreviam poemas ou romances dão conselhos para faturar a pobreza de espírito em geral. Não é por acaso, como diria aquele repórter especialista em obviedades. A literatura tornou-se um desafio muito maior, pois além da existência (nas bibliotecas, principalmente, muito mais do que nas livrarias) das obras de autores magníficos, de todos os tempos, milhões de pessoas difundem suas falas na rede mundial. Estamos em falta de editores bem intencionados, que pensem no leitor e tenham apoio de verdade de políticas públicas e não apenas armadilhas para capturar grana do povo. No último domingo, Elio Gaspari comenta a quituteira do FHC que lançou por uma entidade movida a dinheiro público um livro de receitas para cachorro. A indiferença total ao povo vai nos custar caro. Como diria Golbery, a cabeça de todos vai acabar num poste.
RETORNO - A grande boa notícia dos últimos tempos é que nosso músico maior, Edu Lobo, voltou para casa, depois de uma passagem bem sucedida no hospital. Edu Lobo é gênio total. Além de tudo o que fez a partir dos 60, existem cds recentes (de dez anos para cá) que são maravilhosos, como é o caso de Meia Noite. Edu compõe, arranja e canta como ninguém. É parceiro de gigantescos talentos, como ele. Faz falta na mídia. Jamais aparece na televisão. Por que? Porque é preciso nos assustar com esse mar de terrores chororões. Se difundissem Edu Lobo, haveria pasmo entre a população. Então somos assim? Então somos os melhores? Por que nos negam isso? Para entregar o país, para entregar o país. Para entregar o país, para entregar o país.
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