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1 de outubro de 2004
DUAS VEZES LINA BO BARDI
Das celebridades que conheci, ou pelo menos com quem tive a oportunidade de conversar na minha longa vida dedicada às palavras, algumas eram muito inteligentes, mas havia uma só que era gênio. O nome dela é Lina Bo Bardi. Foram dois momentos. Um, quando inaugurou o Sesc Pompéia, o espaço deslumbrante de espetáculo que a grande arquiteta implantou em São Paulo e que impacta a cultura do país por ser múltiplo, grandioso, finíssimo, original e popular. Foi quando vi a exposição Tradição e Ruptura, que tinha Lina como curadora. E a outra na sua casa do Morumbi, cercado de mata Atlântica, em que me contou histórias maravilhosas enquanto bebia um minúsculo cálice de licor. Lina é a pessoa que mais me impressionou porque via mais longe do que todos e sabia te ouvir como ninguém, e dizer o que ninguém jamais saberia dizer.
O ARRIVISTA GLAUBER - Lina foi quem criou aquela presença imponente e mais do que moderna, eterna, que abriga o Museu de Arte de São Paulo, escola da percepção e da cultura, glória deste país. Ela me contou como conseguiu convencer homens poderosos, inclusive seu marido, Pietro Maria Bardi, além do governador Adhemar de Barros, de que era ela a pessoa indicada para arquitetar o prédio do Masp. Fui fazer uma reportagem sobre a Avenida Paulista (pautada por Fernando Poyares, então editor da revista Santista) e ela me atendeu, pois me conhecia da época da revista Senhor, quando Mino Carta tinha me convocado para entrevistá-la por ocasião do início glorioso do Sesc Pompéia. Tradição e Ruptura foi um balanço de 500 anos de criação brasileira nas formas, no design, na arte, e destacava o cruzamento cultural do país que nasceu diverso, e ao mesmo único na sua grandeza de nação soberana. Falou-me, nessa primeira ocasião, de Glauber Rocha, o qual conheceu menino, na Bahia. Lina fizera parte de um grupo de intelectuais europeus que foram para Salvador e lá permitiram que toda uma geração de talentos baianos se tornassem os novos ídolos da cultura brasileira. Foi por meio de Lina que surgiram Glauber, Caetano, Gil, Tomzé, Capinam e tantos outros. Foi o Renascimento na (e não apenas da) Bahia, que exerce sua influência até hoje. Glauber era um arrivista, me disse ela. Fã de Glauber, fiquei chocado. Você sabe o que é um arrivista? me perguntou, sabendo, pela minha reação, o que me passava pela cabeça. É aquele que sempre quer chegar primeiro. E ria. Não estava condenando Glauber, estava traçando o perfil de um espírito inquieto, que cedo demonstrou sua vontade de abrir caminho, ser vanguarda, chegar antes.
LINDO SONHO DE MULHER - Depois dessa primeira vez, fiquei sempre com vontade de repetir a dose. Muitos anos depois, consegui. Ela me recebeu sentada na cadeira de balanço, de aspecto cansado e bastante triste. Já tinha perdido seu Pietro, pessoa com quem convivi muitos anos, pois a coluna de PM Bardi era lida em primeira mão por mim na revista Senhor, e cuidava de detalhes gramaticais naquele texto em português escrito por um italiano. Eu já entrevistara também Bardi, pessoa importantíssima, que Assis Chateaubriand trouxe da Itália para montar o Masp e que aqui ficou, casando depois com Lina Bo, a brilhante arquiteta daquele grupo que aportou na Bahia. Aproveitei uma viagem do Pietro, disse Lina, pois meu marido não acreditava que eu teria condições de bolar a sede do novo museu. Coisa de homem. Pois fui falar diretamente com Adhemar de Barros e mostrei meu projeto. Quando Pietro voltou, contei-lhe o ocorrido. Sabe o que me respondeu? E a cara magnífica de Lina se iluminava, ela que estava tão triste naquela tarde em que a vi pela última vez. Ele me disse: lindo sonho de mulher. Pois Lina insistiu e seu lindo sonho de mulher virou realidade. Depois, ela me contou como usou um vestido completamente maluco numa festa no Trianon, um local de encontros da elite paulistana, que de lá, naqueles verdes anos do século 20, se vislumbrava a cidade. Pois a Avenida Paulista foi construída num espigão de 800 metros de altura, que cruza a cidade do Paraíso até a Pompéia. De lá se descortinava a cidade de Mario de Andrade. Hoje, nos fundos do Masp, há um paredão de edifícios.
MAIS LEVE DO QUE O AR - Lina sabia o que você pensava, entendia o que você queria dizer antes de você abrir a boca. Falava muito pouco, aos sussurros. Cada frase era uma inauguração. Tinha o dom da conversação, porque gostava de gente. Veio de longe e adotou o Brasil, país que transformou. Cada vez mais, o mundo descobre seu infinito talento e cresce a admiração por essa brasileira por adoção, que me ungiu com sua generosidade. Foi quando acreditei que a chama da divindade pode descer no coração e na mente das pessoas. Cada vez que lembro dela, fico ainda mais agradecido pelas duas conversas, que viraram reportagens, e que deixaram em mim a alegria de ter feito algo próximo à grandeza que Lina distribuiu nesta terra inventiva. Lina, a elegante eloqüência do gênio, que germina entre nós. E da qual guardo a lição de que escutar não é só um dom, mas um toque adivinatório, que a arte não é apenas talento, mas transcendência e transgressão, que um país não é só fronteiras, mas uma erupção, e que o concreto é mais leve do que o ar, como prova o prédio do Masp, desde que você sopre nele a alma imortal roubada dos deuses.
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