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9 de agosto de 2004

NAVEGAR NA CULTURA

Sempre existe um alemão que pensou ou fez antes. Talvez seja o longo inverno de lá, que os confina ao pensamento contínuo. Não há interrupções para aqueles intelectos. Aqui, somos distraídos pelos bosques com mais vida, ao som do mar e à luz do céu profundo. Mesmo Buenos Aires, vista esses dias por um repórter da Band encapotado e contraído, me pareceu mais apropriada para a leitura. Para que ler se a civilização está em crise, tudo é contestado e as montanhas são serenas ao longe? Pois é preciso ler, principalmente os alemães.

ADORNO - Fico reclamando do Gilberto Barros, o onipresente, que tem a petulância de ocupar todo o horário nobre com asneiras, e que divide a TV aberta com nulidades de auditório nas outras redes (todos fazem a mesma coisa o tempo todo) e esqueço de lembrar o que Theodor Adorno (1903-1969) disse sobre esse pesadelo. Europeu sofisticado, ele migrou para a América com o ascensão do nazismo. Consulto a Internet e vejo o que ele viu: a fonte do horror que hoje nos sufoca: A imensa rede de atividades que cobria toda a cidade era regida apenas pela ideologia do negócio. Numa sociedade onde as pessoas somente sorriam se ganhavam uma gorjeta, nada escapava das motivações do lucro e do interesse. Aprofundando-se no estudo da mídia norte-americana, entendeu que por detrás daquele aparente caos, onde rádios, filmes, revistas e jornais, atuavam de maneira livre e independente, havia uma espécie de monopólio ideológico cujo objetivo era a domesticação das massas. Quando o cidadão saía do seu serviço e chegava em casa , a mídia não o deixava em paz, bombardeando-o, a ele e à família, com programas de baixo nível, intercalados com anúncios carregados de clichês conformistas, comprometendo-o com a produção e o consumo. Não se tratava, para ele, de que aqueles sem fim de novelas e shows de auditórios refletissem a vontade das massas, algo autêntico e espontâneo, vindo do meio do povo. Um anseio que os profissionais da mídia apenas procuravam dar corpo, transformando-os diversão e entretenimento. Ao contrário, demonstrava, isso sim, a existência de uma poderosa e influente indústria cultural que, de forma planejada, impingia aos seus consumidores doses cavalares de lugares comuns e banalidades, cujo objetivo era ajudar a reproduzir ?o modelo do gigantesco mecanismo econômico? que pressionava sem parar a sociedade como um todo. Lá, na América, não havia espaço neutro. Não ocorria uma cisão entre a produção e o lazer. Tudo era a mesma coisa, tudo girava em função do grande sistema. Dessa forma, qualquer coisa que causasse reflexão, uma inquietação mais profunda, era imediatamente expelida pela industria cultural como indigesta ou impertinente.(fim da citação).

KRISIS - Consulto o site www.consciencia.org para visitar o texto do Grupo Krisis sobre o fim do trabalho. Vamos a dois trechos: Quanto mais fica claro que a sociedade do trabalho chegou a seu fim definitivo, tanto mais violentamente este fim é reprimido na consciência da opinião pública. Os métodos desta repressão psicológica, mesmo sendo muito diferentes, têm um denominador comum: o fato mundial de o trabalho ter demonstrado seu fim em si mesmo irracional, que tornou-se obsoleto. Este fato vem redefinindo-se com obstinação em um sistema maníaco de fracasso pessoal ou coletivo, tanto de indivíduos quanto de empresas ou "localizações". A barreira objetiva ao trabalho deve aparecer como um problema subjetivo daqueles que caíram fora do sistema.
A mesma lei do sacrifício humano vale em escala mundial. Um país após o outro é triturado sob as rodas do totalitarismo econômico, o que comprova sempre a mesma coisa: não atendeu às assim chamadas leis do mercado. Quem não se adapta incondicionalmente ao percurso cego da concorrência total, não levando em consideração qualquer dano, está sendo penalizado pela lógica da rentabilidade. Os portadores de esperança de hoje são o ferro-velho econômico de amanhã. Os psicóticos econômicos dominantes não se deixam perturbar em suas explicações bizarras do mundo. Aproximadamente três quartos da população mundial já foram declarados como lixo social. Uma "localização" após a outra cai no abismo. Depois dos desastrosos países "em desenvolvimento" do Hemisfério Sul e do departamento do capitalismo de Estado da sociedade mundial de trabalho no Leste, também os discípulos exemplares da economia de mercado no Sudoeste Asiático desapareceram no orco do colapso. Também na Europa se espalha há muito tempo o pânico social. Os cavaleiros da triste figura da política e do gerenciamento continuam em sua cruzada ainda mais ferrenhamente em nome do deus-trabalho.(fim da citação)

RETORNO - Como hoje é uma homenagem aos alemães, registro a visita que o Conde Herr Holderbaum, que também tem forte ascendência italiana, fez no fim-de-semana, onde abriu uma das portas da sua coleção de identidades e nos brindou com magníficas pizzas de originalíssimo sabor. A receita ele nos segredou em parte, sob juramento de que não contaríamos para ninguém, pois teme a estandartização cultural de suas descobertas culinárias, fruto de profunda pesquisa em arquivos familiares antiqüíssimos. O Conde assumiu o posto de Mestre Pizzaiolo e fez uma demonstração civilizatória de um ritual que, como toda mágica, depende apenas de nomenclatura e mis-en-scène.

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