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21 de agosto de 2004

MEU NOME SERÁ VOSSA BANDEIRA DE LUTA



O melhor, o mais importante, o mais trágico e o mais belo discurso da República é a Carta Testamento de Getúlio Vargas. Neste cinqüentenário do suicídio do grande presidente, o Diário da Fonte traz de volta este documento que honra a nação, pela grandeza do gesto que representa, pela atualidade do conteúdo e pela quantidade de significados que encerra. O texto de Getúlio é denúncia, convocação e um balanço histórico da luta pela soberania do país, destruído pelos mesmos inimigos, que hoje triunfam em todos os cantos, enquanto o povo desce cada vez mais numa espiral de pobreza e violência. Reler a carta com os olhos livres, à luz dos acontecimentos recentes, traz a impressionante revelação sobre nosso estágio atual de miséria intelectual e política. Não haverá nenhum cidadão ou líder que chegue onde Getúlio chegou, em lucidez e coragem, naquele terrível agosto de 1954. Honra e glória aos heróis da pátria.

MOTIVOS - Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.(Neste trecho, Getúlio coloca sua decisão numa perspectiva histórica, justificando seu gesto como o resultado de toda uma vida dedicada à causa popular).

LIBERDADE - Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. (Getúlio se refere, pela ordem, aos 40 anos da ditadura da República Velha; à revolução de 30; ao golpe militar que o derrubou em 1945 e à sua eleição por voto livre e direto em 1950. E aborda as dificuldades que encontrou para levar adiante seu projeto, entre elas a reação ao aumento de 100% do salário mínimo, decretado pelo seu ministro do Trabalho, João Goulart).

POVO - Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder. (Getúlio coloca inflação, corrupção e pirataria internacional como instrumentos da destruição da sobrevivência do trabalhador; qualquer relação com o tempo presente não é mera coincidência).

SANGUE - Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.(Getúlio define seu gesto de renúncia, para evitar a ameaça da guerra civil, que ele enfrentou tantas vezes, como um símbolo da sua boa-fé e inocência diante das acusações. A imagem clássica do cordeiro imolado, que atrai a sede do Mal para si, é o batismo do mito que ele construiu em vida).

SACRIFÍCIO - Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.(Getúlio coloca-se como síntese da resistência popular, como referência de transformação e como inspiração para lutas futuras).

VIDA - E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História. (Estas frases são tão fortes e inesquecíveis que despertaram dúvidas sobre a autoria. Esquecem que Getúlio, além de homem de ação, era exímio com as palavras e jamais renunciaria à força do seu verbo, especialmente na hora em que decide morrer).

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