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6 de julho de 2004

A REVOLTA EM FLORIANÓPOLIS

Vejo que o noticiário nacional não encara os fatos que se desenrolam na capital catarinense com a seriedade devida, pelo menos com a lucidez necessária. Para variar, a imprensa trata a realidade como um conjunto de fatos isolados, herança de quarenta anos de ditadura, em que tudo é fato isolado e qualquer manifestação popular é obra de grupelhos infiltrados. Essa é uma tese muito corrente por estas bandas. Bate-se no lugar comum de que a liderança vem de fora e mira nas eleições. O que deve se prestar atenção é que as manifestações de rua contra o aumento das passagens de ônibus é o primeiro sintoma grave da saturação popular diante do arrocho que, agora fica claro, parece se eternizar no governo Lula.

SINTOMA - Todos votaram em Lula pela mudança, e o que aconteceu foi a revelação de que nenhum governo eleito pelo voto poderá mudar o sistema que nos governa, que é o da ditadura civil, obediente ao arrocho financeiro internacional, que possui escravos de sobra e passa como um trator por cima de todas as nacionalidades . Essa é uma percepção ainda difusa, mas Florianópolis hoje funciona como um microcosmo do País prestes a explodir em revolta geral. Vejam o que acontece no Rio de Janeiro: a bandidagem invade casas, expulsa todo mundo, saqueia, mata. Sintoma da falta de segurança e de justiça por parte de governos ineptos, com governantes gerados pelo sistema estrutural autoritário que não permite nenhuma defecção e que, de mãos atadas, se jogam a culpa mutuamente, como se não houve uma situação real de emergência que deveria mobilizar todas as forças do país em frangalhos. Até quando? Diga-se que Florianópolis é diferente, tem uma renda per capita maior, mas os assassinatos aqui já começaram a dar mostras de vigor inédito. A verdade é que esta cidade é um termômetro de uma situação que se deteriora. Custou a chegar aqui, mas chegou de chofre. O marketing que se fez da ilha todo esse tempo não revela a real situação da cidade, apesar de ser ainda muito linda, e na maior parte do território, limpa. Aqui existe uma defesa atuante do meio ambiente e uma elite um pouco mais atenta do que a do resto do país em relação ao equilíbrio social. Há também uma tradição de segurança alimentar que infelizmente está também se deteriorando, pois é proibido plantar qualquer coisa na ilha ? está tudo cheio de mato, sem lavoura, nos disse um velho morador, de 80 anos ? e a pesca encolheu até o limite máximo. Vivemos neste momento uma fase excepcional, que é a pesca da tainha, mas ela acaba dia 15 deste mês e nesta temporada ficou bem aquém do que se esperava, com um rendimento menor do que nos anos anteriores. Isso tudo se reflete num potencial de desequilíbrio aumentado pelo inchaço (ainda pequeno, mas preocupante, com tendência a crescer) da cidade, a falta de emprego que assola o país e a necessidade de sobreviver pagando altas taxas, especialmente nos transportes e nas telecomunicações.

MOVIMENTO - Com a voz embargada, a prefeita Ângela Amin aparece a toda hora na TV, num depoimento gravado, avisando que não cederá e colocando a culpa do movimento nos estudantes que exigem passe livre. O que acontece de mais explícito é o cansaço do arrocho, senão qualquer pregação seria inútil. A três reais a passagem para o norte da ilha (e outros bairros) ? existem outras tarifas, menores, para trajetos muito curtos ? um trabalhador paga seis reais/dia, ou 120 reais mês, o que dá quase meio salário mínimo. Existem casos especiais de passe livre para quem comprova necessidade, como garante a prefeita, e vale-transporte pago pelas empresas, mas há uma grita de que os empresários daqui não estão dispostos a bancar o aumento, que foi decidido pela Justiça. O fato é que as duas pontes ficam interditadas com as manifestações, e agora existe até acampamento diante do terminal de ônibus. Muita gente reclama do novo sistema de transporte, de que os ônibus são inadequados (os que usei não correspondem a essa denúncia) e que é cansativo obedecer a um roteiro que é interrompido a toda hora, pois obriga-se os passageiros a fazer baldeação nos terminais intermediários que existem por toda a cidade. Numa cidade modelo, rodeada da mais bela e infinita natureza, com mar inesquecível, gaivotas sobrevoando teu sonho, esse pesadelo aponta para algo grave. Haverá desobediência civil nesta semana e o pau pode comer feio, pois a idéia é usar os ônibus mas não pagar a passagem. Floripa é uma cidade dividida entre ilha e continente. O apagão aqui isolou parte dos habitantes deste lado (da ilha) e as sucessivas interdições da ponte nesta revolta fazem o mesmo. Da Justiça, vem a sugestão de repressão dura. Da liderança do movimento, vem a insistência na luta, já que, segundo um deles, o povo cansou de ser explorado durante anos, sem reclamar.

ALARME - Não se trata de burburinho pré-eleitoral, mas o sintoma de algo muito sério.Vivemos num regime de opressão financeira e política. Soltaram-se as rédeas do comportamento porque os poderosos adoram ver o povo fazendo papel de palhaço. Junto com o sucateamento da educação, o gangsterismo por todo o lado(rouba-se desde sangue até carga de caminhão)e a corrupção , e temos um quadro poderoso de instabilidade. Floripa levanta-se para dizer que o povo encheu e, se os políticos não encararem seriamente o problema, podemos enfrentar uma tragédia um pouco maior da que já vivemos, em que perdemos um Vietnã por ano no trânsito e outro na violência pura e simples. Quando o povo aqui revoltou-se contra o governo exasperante de Figueiredo, o sintoma era o cansaço com a longa ditadura civil/militar e a pressa a favor de uma reviravolta política. Novamente Floripa dá o alarme. Quem vai escutar?

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