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28 de julho de 2004
O JORNALISMO DUBLADO
A fala que deveria imperar na mídia é a do jornalista. Ele é quem precisa tecer o texto, soma e síntese de linguagens alheias, que passam pela seleção dos critérios e fundamentos do ofício. Quando isso não ocorre, outros poderes se intrometem e decidem a hierarquia das falas. O caminho mais curto para esse equívoco é engessar a redação numa camisa de força, quando impede-se a publicação de estilos, mata-se a vocação autoral em nome de regras que estão a serviço do enterro do jornalismo. Não pode haver dissidência entre o articulista e o repórter. Ambos assinam e portanto precisam estar liberados para o estilo. Vale para os dois o enxugamento da frase, a objetividade, a clareza e a transparência. Sem isso o jornalismo é como filme dublado, em que tudo se parece com a obra original, mas há um tropeço fundo quando os personagens abrem a boca com a língua errada, a entonação artificial, o timbre deslocado.
ATROZES - Numa reportagem sobre a dublagem brasileira, destacou-se que esta seria a melhor do mundo. Como poderão saber disso os outros povos, que não falam português? Na mesma matéria, fizeram o que sempre imaginei que fazem quando há gritaria nos filmes: juntam o porteiro, o iluminador, o entregador de pizza e os atores para berrar uma algaravia sem nexo, muito comum nas dublagens. A repórter então proferia a revelação: eles estão atuando! Não, não estão, estão fazendo uma contrafação do som original (que é a metade da obra). Tenho a mesma sensação quando leio os jornais ou vejo o noticiário na TV. Vozes atrozes se interpõem no trabalho da informação e tudo fica por isso mesmo. O mais grave é o Jornal Nacional, essa newsletter do poder. Vejam como o país se recupera na véspera das eleições, como o emprego aumenta, como a renda per capita sobe, como essa-gente consegue ocupação de garçon, diarista, passeador de cachorro. Como é fofo ver também essa revelação da babaquice, o Carlos Nascimento, achar que a mãe do Palocci deveria ser arrogante, pois, afinaaaal, ela é mãe do todo poderoso fala-mansa e sorriso anódino. Mas não, a senhora se revela um exemplo de humildade. Mas que coisa, não Nascimento, quem diria? Tu que elogiaste o Kajuru para logo depois o próprio ser defenestrado da Band e ficaste de bico calado, como me saíste bobão no teu papel de âncora que assina, griffe do jornalismo dublado. Os âncoras assinam, ou fazem de conta com a caneta no final do telejornal, como é o caso da Padrão, para dizerem que escrevem, que possuem uma caligrafia pessoal, um estilo de caras e bocas, e que portanto se diferenciam dos outros, o povo, tão essa-gente que nem sabe escrever. Sem falar no biquinho feito diariamente pelo Isso-é-uma-vergonha, tão contundente em sua obviedade, que sempre começa suas arengas com ora! E estão há décadas no vídeo, tomando conta do horário nobre nesta nação de escravos.
HORRORES - Nem a Abril, que na época contava com grandes jornalistas, nem Mino Carta, que foi expulso da TV pelo Antonio Carlos Magalhães, nem o Jornal do Brasil, que era o veículo impresso mais importante e influente do país, conseguiram entrar para a televisão. A TV foi cair nas garras de Gargalhada, o Palhaço Sinistro. Ou do Genro daquele poderoso e seus descendentes. Ou dos edulcorados sanguessugas da nação. Ou do Pastor, o voz fina melífluo que arrecada zilhões dos seus cultos. A poderosa rede evangélica que toma conta de todos os horários, são os dubladores dessa televisão à deriva. Todos os dias e a toda hora a mesma coisa. A nação de escravos a tudo engole, sem tugir nem mugir. Ermos de cultura, arte, conhecimento, que foram erradicados da TV, ficamos plantados diante do aparelhos como Garfields sem verve. Saímos da TV e vamos ler um livro, ler os artigos do Rascunho, reler algo do Mais!, fazer poesia. Mas chega uma hora que precisamos voltar à imagem, descobrir algo. As emissoras estrangeiras da TV a cabo se locupletam na publicidade sem fim e no repeteco dos programas. Enquanto isso, geme de dor o talento não descoberto, o gênio desconhecido, o escritor sem editora, o cantor perdido na noite. Somos assim. Poderíamos ser melhores.
FUNDAÇÃO - O jornalismo dublado é aquele que copia gravações, se ajoelha diante dos manuais, fica quieto depois das demissões, difunde as porcarias da TV sem jamais denunciá-la. É o que aposta apenas em figurinhas carimbadas, que ocupam vastos espaços sem oposição nenhuma. Que todo ano faz a mesma matéria. Que acha graça sempre das mesmas coisas. Que põe plantão quando neva em São Joaquim, quando faz frio em Campos de Jordão (puxa, como está frio aqui!), que denuncia e depois esquece (e para dizer que não esquece diz que está de olho), que não ajuda a mudar nada, que entrevista os bandidos pixadores que sempre falam do que não entendem, ou seja, da tal adrenalina, e por aí vai. O jornalismo dublado é aquele que coloca todos os microfones deitadinhos diante de Lula, que pergunta como é que você se sente, como é que é essa coisa, e se com certeza você tem algo triste para confessar diante das câmaras, como perdi tudo, fiquei sem nada e todo mundo se põe a chorar. O jornalismo dublado é o monopólio da comunicação brasileira, que impera no caos como um abutre. Olha, mãe, é um avião, um pássaro, o Super-Homem. Não, é mais matéria sobre a alta e a baixa do dólar, o índice Bovespa, o Dow Jones, o seguro saúde que nunca prestou e que só agora prestaram atenção nisso. Poderíamos ser melhores. Poderíamos seguir o conselho do meu pai. Vai ser jornalista? Então funda o teu jornal. Fundei, pai. Chama-se Diário da Fonte. Ele não existe. À parte isso, tem todos os sonhos do mundo.
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