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31 de julho de 2004
O GOL EXTREMO DE ALEX
Nei Duclós
Futebol é ficção. Isso não quer dizer que seja irreal. Pelé, por exemplo, é um personagem, e nada mais real do que o Rei. Sempre relembro, a meu modo, e com minhas imagens e conclusões, o que os outros descreveram com suas certezas. Ou imagino, como qualquer torcedor comum, campeonatos que nunca existiram, jogadas inverossímeis, campanhas memoráveis que não saíram do quarto do sonho.
Um lance tem me perseguido nos últimos dias, parecido com tantos outros, mas único nos seus desdobramentos. Trata-se do momento decisivo de um campeonato. Os times não interessam. O certo é que Alex está parado, exausto, no último segundo do jogo empatado, pronto para bater uma falta com barreira. Ele deixará o desfecho a cargo do destino, a bola.
PROFECIA - Noto que Alex toma impulso arqueando os cotovelos. Sempre faz isso e agora fará como nunca. Mas antes deixem-me falar de seus músculos transfigurados pelo cansaço e o suor. As pernas já não lhe obedecem e ele fica numa posição parecida com aqueles que teimam em ir para certo lugar mas o corpo insiste em tomar outra direção. Apenas vislumbro esse gesto potencial, pois ele está imóvel, de cabeça baixa, mas com os olhos superpostos, saindo das órbitas, que é o jeito de os visionários enxergarem o invisível.
Ele sabe que não pode mais confiar na sua inteligência, derrubada pela tensão de inúmeros toques que não tiveram repercussão merecida, passes que conseguiram colocar atacantes cara a cara com o gol mas não cumpriram a profecia das arquibancadas, que sempre se antecipam a favor da sorte.
Alex sabe, nesse instante supremo, que também não poderá contar com sua precisão de gênio, pois o pé certamente não vai chegar no impulso certo para conseguir o que ele gostaria que acontecesse. Sua única saída é acreditar que a bola, ao ser tocada pela graça do seu chute, poderá tomar vida própria, como aconteceu tantas vezes. A bola, logo que é colocada em jogo, aprende rápido que deve se dirigir às goleiras, mas há vários caminhos possíveis.
Sua ferramenta mais conhecida para chegar a essa conclusão é o cruzamento em diagonal, já que as paralelas são um passe monótono e burocrático da zaga para atrair atacantes e assim abrir um claro no meio do campo. A diagonal é a transmutação da linha reta que sonha com o círculo e por isso corta caminhos e vira jogos com extrema competência. Mas Alex não pensa nisso nem em nada parecido. Ele desistiu de pensar e quer que a bola tome o seu lugar.
SURPRESA - O goleiro, do lado de lá da barreira, não vê Alex, que não tem altura para se sobressair naquela distância. Pressente apenas que o chute virá como uma visita surpresa e poderá chegar em qualquer canto, de qualquer direção e em qualquer velocidade. Prepara-se e confia também na sorte, porque nenhum treinamento poderá prepará-lo para o que virá a seguir.
O goleiro sabe que a bola alcança a velocidade da luz e no momento em que o pé do atacante tocar na criança, ela já estará ao alcance dele, goleiro, ou então se perderá pela linha de fundo ou beijará a rede. Alex conhece aquele goleiro e prefere apostar que não poderá surpreendê-lo, pois esse adversário deve estar preparado.
Por isso puxa os cotovelos, coloca um pé atrás e com o outro firma a coluna que vai segurar o templo do chute. O pé recuado então viaja pela perna em movimento e quando chega perto da bola entrega-se para não mais ter outra chance. O pé desiste de chutar quando decisivamente chuta. Por isso o lance parece, no início, que não irá acontecer de verdade. Mas o pé de Alex, o jogador que desistiu de pensar nesse instante extremo, serve de faísca para a bola que enfim arranca em direção ao nada.
A bola adquire vida própria e projeta-se por cima da barreira como se quisesse atingir as cabines de rádio, como se quisesse pipocar no meio do caos popular, como se quisesse também desistir do que lhe deram de bandeja e que ela jamais poderá recusar. Depois do chute, Alex vira-se para o lado, como se estivesse saindo em direção ao vestiário. Estava entregue e o jogo terminara. Nem tinha forças para decidir o campeonato nos penaltys. Não arriscaria seus companheiros e toda aquela torcida.
PÂNICO - Mas a bola sabe que não tem impulso para cruzar a linha de fundo. Tomou altura demais e vê-se no pânico da descida. O goleiro troca de pernas para adivinhar o canto que ela vai decidir a partida e esse segundo é a sua perdição. Pois a bola, acompanhando a loucura da jogada, desfaz-se em vácuo tomando um túnel que algo construiu em torno, talvez a expectativa do público, talvez a ansiedade dos jogadores, talvez o terror dos telespectadores, que estão longe demais para acompanhar todos os cacos daquela ruína de tempo.
A bola desiste de ir longe, mas também não permite que acabe encaixada num goleiro qualquer de um time qualquer. Ela precisa mostrar que recebeu o toque como um presente e que poderá desembrulhá-lo antes que digam acabou. Ela, que gosta de quicar na frente dos goleiros para impressionar a crônica esportiva com ilusões, como a do morrinho artilheiro, prepara agora o gesto final. E descamba, como um armário, como o segundo Gilmar diante de uma falta batida pelo Neto no Maracanã, como um saco de batatas que se espatifa.
Só que o impulso inicial tinha levado a bola longe demais. Por isso ela lambe o travessão e faz aquele chiado horrível para os goleiros, o do roçar imperdoável na rede. A bola então jaz no fundo do gol como um animal sem vida. E Alex, que chegou a virar o pescoço para ver onde a bola tinha se enfiado, levanta apenas um braço antes que a torcida, que estava muda, comece a levantar-se como o Mar Vermelho diante de Moisés.
Foi assim que vi essa jogada nesses dias. Algo que nunca existiu ou existirá, talvez. Mas serve para me dizer o quanto o futebol é apenas linguagem e que a inteligência suprema dos jogadores exige que os jornalistas estejam à altura do jogo que os sustenta, do futebol que os transcende, do grito que expressa a glória que ninguém nos tira.
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