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15 de julho de 2004

MONSTROS E CAVALEIROS



Há dois tipos de atores. Os monstros, como Othon Bastos, Marlon Brando e Miguel Ramos, que se transformam em criaturas assustadoras, como, respectivamente, Corisco, o Coronel Kurz ou o vilão correntino do novo filme de Beto Souza, Cerro do Jarau (tenho medo só em pensar nessa aparição que vai assombrar as telas daqui a pouco). E os cavaleiros, os que jamais deixam de ser o que são, mas nos convencem ao montar em personagens inesquecíveis, como o Tiradentes sem barba do José Wilker (que nos encanta com seu bicheiro em Senhora do Destino) ou todos aqueles seres que James Dean imortalizou no cinema. Entre os dois, há uma infinidade de gradações, com Tom Hanks, Nick Nolte e Steve McQueen, mais próximos do segundo grupo, ou Robert Duval e Monty Clift, grudados na elite do primeiro.

ARFANTES - Na periferia desse trabalho, lá onde nossa paciência tem limites, há os profissionais que acham a respiração um passaporte para a grande atuação. Existem os arfantes, que sugerem grandes emoções ao se deparar com alguma revelação que deveria ser impressionante, como a Suzana Vieira do capítulo de ontem da novela das nove, que respirou tanto que acabou desmaiando artificialmente em cena, pois todo o exagero inicial precisa de um grand finale. Lembro Henry Miller em Trópico de Câncer, que se retirou de um concerto de Ravel porque começava com tambores. Se alguém começa com tambores vai ter que terminar com canhões, argumentou o célebre vagabundo em Paris.

Há também os canastrões que dão respiradinhas rápidas para definir determinação em seus personagens, como Tony Ramos, que vi em início de carreira numa peça de teatro e jamais me convenceu em cena. Seu coronel Boanerges na novela das seis abusa tanto da respiradinha que acaba sendo uma marca do personagem o estado catatônico de quem não sabe para onde respirar. Fica parecendo charme, mas é pura lógica: quem dá a respiradinha fica assim mesmo quando se depara com alguma emoção que não pode transmitir. O truque é não transmitir nada. Lembro Tônia Carrero dizendo que atuar é fingir, o que é de um equívoco atroz. Os verdadeiros atores não fingem em cena, ou eles se transformam no que pedem para ser ou eles cavalgam a criatura sem piedade.

EXCESSOS - Mulher é outro departamento. Os homens utilizam o excesso para impor seu trabalho. Nada mais excessivo, e convincente, do que o bandido paraguaio de Miguel Ramos no já clássico Netto perde sua alma,de Tabajara Ruas e Beto Souza. E o que dizer de Marlon Brando gritando com as mãos na cabeça Steeeeela em Um bonde chamado desejo? Um parêntese: descobri porque o Arnaldo Jabor chamou o Brando de Marlôn nas suas invectivas quando o ator maior morreu: como um dia foi diretor de cinema, Jabor acha que pode tratar Marlon Brando pelo primeiro nome, como se fosse íntimo e tivesse cacife para manipulá-lo, como fez com inúmeros atores.

Jabor teve a sorte de contar com Paulo César Pereio em seus filmes e deu a impressão de bom cineasta. Mas Pereio é o excesso de um monstro que cavalga a si mesmo. Ele é sempre o mesmo, gostem ou não. É uma mistura dos dois grupos principais, já que esta é uma classificação unilateral, que tirei da cartola. Normalmente achamos o máximo o que Pereio faz no teatro e no cinema e nas vozes que empresta aos comerciais (aquele som gutural criado em Alegrete, cidade que um dia foi capital, por isso gera esses brasileiros definitivos como Pereio ou seu irmão, o tremendo ator Pingo, já ouviram falar? Pingo detonou na montagem brasileira da peça de Peter Brooks, Marat-Sade. Quando entrei na platéia do teatro em Porto Alegre nos anos 60, Pingo já se apresentava todo de branco, com aquele olhar que assusta até dragão).

MULHERES - Mulher é contenção máxima em cena. Quando explodem, normalmente não funcionam. A maior atriz do mundo é Vivian Leigh em E o vento levou. Ninguém ficará livre daquela criação, Scarlet O'Hara, enquanto estiver vivo. Bastou ela ficar em frente a um incêndio, sem dizer nada, para que o diretor Victor Fleming tivesse certeza que era ela quem procurava há mais de um ano, num concurso que movimentou os Estados Unidos (já que o livro era best-seller absoluto), mas não deu em nada. Vivien não disse nada para ganhar o papel e desliza no filme para comer com farinha todos os atores desse grande filme, desde Leslie Howard até Clark Gable (um ator-cavaleiro magnífico).

Eva Wilma chega perto, na obra-prima de Luis Sergio Person, São Paulo S/A (um dos três maiores filmes brasileiros de todos os tempos, junto com Deus e o Diabo, de Glauber e O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte). Sua cena com Walmor Chagas (que tinha tudo para ser um monstro), em que detona numa separação irreversível do casal em crise, é inesquecível. Mas quem imita Vivian Leigh o tempo todo é Elizabeth Taylor, que só se contradisse em Quem tem medo de Virginia Wolf, quando precisou virar monstro para enfrentar o cavaleiro Richard Burton. Quem pode com a força da contenção absoluta de Merryl Streep contracenando com o cavaleiro Clint Eastwood? Ou com a contenção que desaba em Geraldine Page, a atriz maior que nos arrebata quando aparece em cena? Ao saber se conter, a atriz se excede em atuação.

GESTO - James Dean fez o caminho do avesso: sua intensa contenção o leva para o excesso masculino, que é o seu nicho verdadeiro. Lá ele arrasa. Quem viu James Dean fazendo aquele gesto com a mão espalmada e os dedos juntos, para Rock Hudson em Giant, sabe do que se trata. Seu bigodinho fino, seu chapéu de texano, seu cabelo grisalho constroem com esse gesto(que parece o desenho de um vôo definitivo)um momento sem igual nessa arte incomparável que é a atuação. Que de tão grandiosa e diversificada, nos escapa em qualquer tipo de classificação.

Mas qualquer método serve para fincar algumas balizas no caos. Por isso arriscamos dizer o que nos ocorre, para homenagearmos esses seres que acabam nos transformando em pessoas muito melhores do que um dia sonhamos ser.


RETORNO - Imagem desta edição: James Dean em Vidas Amargas, de Elia Kazan.

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