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12 de julho de 2004

CEM ANOS DE NERUDA



Não queria sobrepor um post ao ensaio sobre A Vampira do Lago, mas blog é assim mesmo, essa tripa sem fim que obriga o leitor a usar o cursor. Além disso, este é um jornal diário e como diz aquele festejado poeta, muito profundamente, gasp, o tempo não pára (é mesmo? nossa!). Pois fica o aviso: abaixo desta edição, visite a viagem que fiz ao romance de Tailor Diniz (que ganhou caprichada edição do nosso webmaster no site. E hoje, para comemorar o centenário de Neruda, destaco aqui o que publiquei em 18 de setembro de 1993, na Zero Hora, com o título de Neruda: O animal ferido da palavra. Depois do texto (que considero um dos meus manifestos poéticos) vem o poema Pablo, do livro No Mar, Veremos (que obteve zero resenhas nos grandes veículos, com exceção do Jornal da Tarde e uma bela nota da IstoÉ - parabéns, grande imprensa!).

GRITO - Poesia é a palavra diante da morte, a distância de um braço entre o poeta e seu destino. A tensão permanente do poema é a visão desse desenlace e é disso que se alimenta a sua eternidade. É por isso que o poeta sobrevive, não porque lute para ficar vivo, mas porque escreve sabendo que vai morrer. Quando, enfim, a última batalha desce sobre seu corpo em brasa, a obra grita, como condenada. Pablo Neruda, morto há vinte anos (N.B: hoje são 31), encarna esse animal que cruza todas as fronteiras e regressa à pátria para ser assassinado. Está na moda hoje destruir o mito para celebrar a exposição das vísceras, compensação de um tempo onde triunfa a indiferença. Assim, o vazio é confundido com virtude para privilegiar os "erros" de Neruda, como um poema para Stálin, por exemplo. Mas o que é datado, no poeta, morre com ele. O que permanece é o crepúsculo enrolado aos seus pés e a solidão, como um túnel.

ENCARNAÇÃO - Não é apenas a sua lírica que cresce quanto mais nos distanciamos do réquiem de 21 de setembro de 1973. Assoma a pátria, sua metáfora extrema: na hora em que morria , era o Chile que estava sendo devorado. Pois não bastava matar o presidente, era preciso também eliminar a esperança. Neruda entendeu que tinha chegado a sua hora. E acabou-se, puxando a toalha no momento em que os tiranos comemoravam a vitória. Do seu engajamento fica essa encarnação do povo e terra, o lirismo épico de sua caminhada, a manutenção do mito, não restrito ao seu país. Ele pertencia a uma raça quase extinta, aquela que sumiu do mapa porque o mundo mudou de estilo. Já foi longe a época em que as nações cultivavam seu poeta, que recitava versos na praça e traçava biografias andarilhas. Ele alimentava assim a multidão faminta de História, ainda presa a palavras hoje mortas, como atávico, mártir, telúrico. Era um artista popular da palavra, mas a mensagem que ele inventou para a rápida passagem do tempo atraiu a atenção dos lobos. Minaram então sua sorte trazida do berço, desmoralizaram seu andar partido, imitaram seu timbre, roubaram-lhe a voz. Pablo Neruda é a expressão maior desse romantismo tardio, desse último suspiro da imaginação emocionada, que morre nos braços do povo ao som da metralha.

TÚNEL - Hoje, quando o Chile ressurge como tigre, lembramos o comportamento dos chacais. As manifestações do 20º aniversário do golpe de 1973 ainda não cobraram a conta. Falta visitar o túmulo do poeta, gritar seu verbo em praça pública (N.B.: o que já está ocorrendo, assim meio do avesso, pois nas comemorações vejo mais circo do que poesia, o que é comum hoje). Para o Brasil, retalhado numa guerra interminável - exatamente porque adiamos todos os desenlaces - ele inspira o tom de eternidade, que nos escapa. Estamos presos demais à pressa, à ilusão eterna do presente.Muitos poetas apostam no supérfluo, no fugaz, no palavrão - ainda ludidos de que é possível "chocar" alguém com gestos ou palavras, não fôssemos nós observadores permanentes das chacinas. A poesia brasileira costuma ficar dividida entre o mimetismo nerudiano e o espólio da demolição concretista, entre a pomposidade inútil e o falso vanguardismo. Estamos mergulhados demais no horror para enxergar a poesia.

SILÊNCIO - É nesse túnel que deve se desenhar o poema ainda em silêncio, como um animal ferido. A longa cicatrização imobiliza o gesto, enquanto a palavra estilhaça nos vidros de uma nação que derrapou. Nesse exílio obrigatório, a morte de Neruda abre uma trilha. Ele identificou-se com a grandeza e a tragédia chilena e tornou-se o mais caro patrimônio do país. Precisamos deixar que ele nos toque com os dedos longos da palavra. Não podemos entretanto, mergulhar no equívoco de endeusá-lo, nem nos deixar enganar pela maior parte da sua obra póstuma. O que ele mesmo publicou já basta: Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, Confesso que Vivi, As mãos do Dia, Canto Geral, entre outros livros iluminados.

PABLO

Nei Duclós

Da cordilheira desce a lava que fecundou as ilhas
o sêmen das águas profundas
a mão que alimentou o arco-íris

Da cordilheira desce Neruda, o passageiro noturno
pai que nos jogou no meio do mar
braço possante colhendo a mínima flor

Do Chile desce o diamante que força o túnel
magia da clara mina onde o sol resiste
duro perfil de pássaro ferido

Das cidades sagradas da América desce Neruda
coração a serviço diário do futuro
ninho de um povo que ainda será livre.

RETORNO - 1. Paulo Florêncio despede-se da primeira parte do meu romance Universo Baldio: Caro Nei Duclós: Hoje (domingo) me despeço de Alípio, Jacaré, Peneira e André, o do cooper. Juntos com esses personagens, deixo a República de Itaguaçu um pouco saudoso como se eu tivesse vivido lá junto com vocês. Estou com uma tremenda curiosidade para saber por onde andam hoje esses seus amigos de juventude. O que eles pensam, inclusive você, dos rumos que tomaram o nosso país.Apesar das duras penas vividas com os seus amigos à época, sua despedida da República foi poética. Você saiu para encarar outra vida com a sua companheira e mais um acompanhante (ela estava grávida), ou seja, mais um personagem dessa sua história. Que, aliás, não seria apenas mais um personagem. Mas, mais uma pessoa parte de sua vida para dar continuidade em sua história. Enquanto isso eu me embarco no Segundo Tempo de Universo Baldio , Papel de Bala. 2. Rubens Montardo Junior envia notícias da fronteira: Prezado Nei:Continuo lendo e fanático pelo teu Diário da Fonte. Bem, vamos as novidades:a) Miguel Ramos et caterva está filmando Cerro do Jarau, de Beto Souza, exatamente no Cerro do Jarau, hoje, amanhã (segunda) e terça-feira. Depois, dois dias e o filme será concluído em Porto Alegre. No sábado, no Segundo caderno da Zero Hora saiu uma "enorme" (que espaço ridículo dão a boa cultura, a cultura propriamente dita, embora nos inundem com banalidades e mediocridades) reportagem sobre as filmagens em SantAna do Livramento;b) Na próxima sexta-feira, dia 16/07, às 18h30min, o Ubirajara Raffo Constant, o Biratuxo, lançará no Centro Cultural Dr. Pedro Marini, em Uruguaiana, seu primeiro romance intitulado Pampa em 23, que versa sobre a "rebolução" de 23, seu início em nossa cidade e seus desdobramentos de forma romanceada. São mais 480 páginas. Imperdíveis! 3. Já avisei o Rubens que o Biratuxo precisa me enviar o romance dele, senão eu mando o Cabo Adão pegar todo mundo.

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