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27 de junho de 2004

FOI CASTIGO, PAI

Nei Duclós


Cheguei atrasado pela primeira vez no Colégio naquele primeiro de abril de 1964, pai. Tinha brigado contigo, não de forma clara e contundente, pois nunca fiz assim, mas da minha maneira de menino, dissimulado, batendo porta e sendo punido por isso. Resolvi não ir na escola no dia seguinte, já que depois de brigar comigo, tinhas viajado, não pela briga, mas porque assim decidiste. Minha mãe então me obrigou a ir à escola, porque não podia depender da tua presença, pai, para impor a autoridade dela. Fui de má vontade e cheguei atrasado, perdi a primeira aula. Fomos, todos os retardatários, para o campo de futebol de baixo, de grama, e sentamos bem no meio do círculo central. Foi então que me avisaram: a revolução tinha estourado.

PLANO SECRETO - Meu primeiro impulso foi de entusiasmo, pois não sabia ainda que tinha sido a direita e não o trabalhismo que estava fazendo a revolução, e que revolução nunca foi, disso sabemos desde o primeiro instante.
- É verdade? exclamei. Não brinca!
- É claro que é verdade me disse o colega que estava comigo, junto com outros dois. Ou tu acha que essa situação vai continuar assim, essa baderna, esse comunismo no governo?
Foi aí que caiu minha ficha, pai. Eu estava naquele primeiro de abril, como um bobo, sentado num estádio vazio, ao lado de colegas ultra-reacionários - pois só eu e mais alguns éramos trabalhistas - recebendo a pior notícia da minha vida. Hoje, lembrando aquele dia medonho, pai, em que me sentia furioso por não ter imposto minha vontade, arrependido por ter peitado minha mãe na tua ausência, com uma sensação de ressaca de vodka, que como todos sabem, é a pior que existe., mas sem ter bebido nada. Aquele dia foi único na minha vida colegial cheia de boas notas, pai, notas tão altas que até mesmo tu ficava um pouco sério antes de me dizer que não iria me elogiar, que eu não fazia mais nada do que minha obrigação.

Talvez por essa aparente indiferença, pai, eu tinha decidido relaxar um pouco, ser rebelde, deixar de lado o cabelo curto demais, a roupa comportada demais. Eu queria outra vida, pai, e ganhei de presente outro país, ou melhor, o não-país inaugurado naquele dia. Hoje só posso constatar que o golpe foi um castigo contra minha má vontade, pai. Eu não queria saber se havia dificuldades em casa, eu queria saber de política e de poesia. Tinha até feito uma diagrama revolucionário, que eu guardava escondido na gaveta da minha escrivaninha, em que detalhava a tomada da cidade. Tinha usado um caderno de desenho, que ficava abaixo de todos os papéis e pastas. Era meu plano secreto para tomar o poder.

CERCO - Foi uma época explosiva, pai, e tu sabes disso. Foste um guerreiro a vida toda e aos 18 anos partiste para o front, para derrubar o República Velha. Mataste, prendeste inimigos nas trincheiras de Paraná, onde houve guerra de verdade. Depois, em 1932, lutaste até quase a fronteira de São Paulo, e disso sei muito pouco, pois a geografia que me descrevias nas tuas histórias nunca ficou clara para mim, garoto que só escutava e jamais perguntava. Fui criado para escutar os mais velhos, pai, mas também me revoltava contra isso. Queria falar e não podia, por isso comecei a escrever. Até hoje, erradicado da vida política, continuo escrevendo, numa obsessão sem fim, como se eu fosse um escritor mesmo e não o que realmente sou, um guerreiro partido por um golpe de estado, alguém que recusou-se a amadurecer porque tinham me tirado a vida adulta que eu sonhava ter um dia.

Estavam preocupados comigo, pai, naquela época. Estávamos na véspera de uma grande eleição do nosso grêmio e íamos peitar as feras reacionárias, aquelas que me gritavam em aula "cala a boca, comunista!", principalmente nas aulas de educação moral e cívica, que tinha até um professor lacerdista. Depois do golpe, filhos de almirante ou generais, não lembro mais, vieram para minha aula por um período, para nos observar. Então um filho do chefe da capitania dos portos - preciso explicar, pai, para quem lê, que Uruguaiana é lugar de água de fronteira, portanto da Marinha - me disse com todas as letras:

- Vi que és um estudioso. Não devias escutar esses comunistas. Te afasta dessa gente.
Foi um aviso. Nem sei o que aconteceria se Jango não tivesse evitado a guerra civil, pai. Talvez te colocassem na cadeia, pois tinhas um dia assinado um manifesto pró-Prestes e por isso arcavas com uma injusta fama de comunista. Mas admiravas o Prestes porque foi teu herói na infância, pai, e não por ser comunista. Talvez nos metralhassem a todos, como quase metralharam a família do Cebola, que foi cercada, e isso eu vi, por estancieiros armados e por soldados. Um desses enormes estancieiros lacerdistas - todos tinham o olhar sampacu, idêntico ao do Lacerda, era a marca registrada deles - sacudia as balas no bolso e completamente armado dizia:
- Vai correr bala, o homem não quer sair.

O pai do Cebola era líder trabalhista na câmara municipal e só entrou milico armado lá porque ele, pai, deixou, já que os filhos dele, o próprio Cebola, o Getulio e o mais velho, o Arnaldo, não deixavam, pai. Isso tudo eu vi, vi como o Arnaldo fez menção de desarmar o milico que queria entrar com metralhadora e tudo e foi repreendido pelo pai, pois a farda entrava para negociar e não para prender. Achei aquilo de uma coragem extrema, não só pelo pai, mas pelos filhos, nossos colegas no Colégio Santana, e que eram corajosos como ninguém, porque enfrentavam uma tragédia familiar e política com as botas postas, com o nariz empinado dos uruguaianenses guerreiros, defendo a casa que era deles.

MELHORAL - A mais patética cena, e essa também eu vi, pai, foi a prisão do Melhoral. O pobre do bolicheiro era assim chamado porque tinha uma propaganda desse remédio na sua porta. Chegaram dois caminhões de milicos armados de bazucas para prender o que tinha fama de ser um comunista. Para mim era apenas um bolicheiro pobre. O neto dele foi quem disse: o vovô está escondido no telhado. Então levaram aquele comunista pai, o Melhoral, coitado, o bolicheiro de esquina, perto da nossa casa. Era esse o perfil do golpe de estado. Trincheiras na praça Barão do Rio branco, sentinelas nos mandando dispersar. Foi o que fizemos. Dispersamos para sempre. Nunca mais nos reencontramos. Perdemos a pista uns dos outros. Nos exilamos daquele Brasil que foi enterrado naquele dia, pai.

Tudo por culpa minha, que não queria ir mais à aula, que estava indignado com minha vida limitada da fronteira, que queria criar asas antes do tempo. Eu tinha o quê? Uns 15 anos, estava na quarta série ginasial e já queria ser alguma coisa. Nunca mais fui nada, pai, a não ser esse pescador de palavras, esse tecedor de textos, de poemas, de matérias. Virei jornalista por falta de opção. O que eu queria mesmo era fazer a guerra e tomar o poder. Eu queria peitar aqueles estancieiros e milicos, eu queria dar tiro, como via nos faroestes. Talvez tivessem me metralhado aquele dia, pai, não sei. Quem sabe Jango me salvou a vida e agora, Brizola, que morreu, me deixa desamparado diante das minhas memórias, diante de ti, único e insubstituível pai, homem de guerra e de decisões, o melhor anfitrião do mundo, a pessoa querida por todos pois a todos estendia a mão. Um homem sem vaidades, que tinha amigos entre o povo, já que nunca fez grandes amizades na elite, com honrosas exceções. Todos iam se aconselhar contigo, pai, porque eras a pessoa que eu tive a sorte de ter como chefe de uma família maravilhosa. Briguei contigo só aquela vez pai. Foi o suficiente para destruírem o Brasil.



AVENTURA - Precisava te dizer isso, pai, mesmo sabendo que fizemos as pazes no dia seguinte, assim como continuei amigo de muitos filhos de estancieiros, porque a política em Uruguaiana não nos separou, apesar do golpe de estado. Parece até que o golpe tornou sem graça nossas discussões e só nos restou então uma infância em comum, uma amizade que acabou se firmando com o tempo, que tudo lava e cura. Mas isso só sei agora, pai. Muitas vezes achei que eu devia me revoltar contra ti porque encarnavas o que eu mais temia, uma vida sem grandes aventuras. Que engano, pai! Fiquei a vida toda diante das palavras enquanto tu fizeste a guerra de verdade. Porque entraste na Brigada não para matar gente, mas para sobreviver, para ter um salário, comer, ter uma carreira. Quando a guerra estourou, estavas de farda e foste para a trincheira sem piscar os olhos.

Ah, pai guerreiro que já se foi, mas que continua comigo, nesta vida de luta sem fim, num país que teimam em enterrar, mas que é o nosso Brasil de sempre, que nos criou, amparou e onde depositamos nossas carnes cansadas depois de tantos séculos de suor.