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22 de junho de 2004

BRIZOLA, DE CORPO PRESENTE

Agora estamos sós, Brizola. Partes para a nossa terra e nos deixas na mão dos tiranos, que se revezam na mídia dizendo as maiores barbaridades, como se pertencesses ao passado, ao que chamam de "História". Eles distorcem a verdade, como sempre, porque disso tiram proveito com seus dentes cheios de sangue. Mas todos sabem que tu és a História, Brizola, não foste a reboque dela, nem ficaste preso ao século 20. Cruzaste o umbral do milênio armado de tua longevidade e estavas no front quando te colocaram na maca para te perfurar os órgãos, pesquisar tuas dores, intervir no teu corpo, agora presente no Rio, em Porto Alegre e definitivamente na terra dos presidentes, São Borja.

SÃO BORJA - Estive uma vez em São Borja numa viagem difícil que fiz com meu pai dentro de um velho jipe Candango, desconfortável, numa estrada de lama. Tivemos que contornar Itaqui, fomos por lugares ermos, caiu a noite. Tínhamos almoçado na estrada na Pensão da Siá Chica, onde fomos servidos pelo dono, um enorme senhor negro, sério, nobre na sua postura de gaúcho estradeiro. Encontrei então no dia seguinte a terra que agora vais ser enterrado, querido amigo. Parecia Uruguaiana, era quase idêntica, com suas ruas, calçadas, praças. Tinha um ar de capital de um país longínquo, o que um dia foi conhecido como Brasil. Fazia sol nesse dia, Brizola, e toda a cidade tinha o clima da grandeza dos heróis que lá estão enterrados. Agora tu, Brizola, que não tiveste a ventura de ser nosso presidente. Tiveste a hombridade de apoiar os que te apunhalaram. Pensando no país, que entregaram, na democracia, que enfim não veio, abriste espaço e deste votos para esse governo que traiu o povo e que subiu ao Planalto graças aos teus votos, Brizola. Um desses votos foi o meu, querido amigo. Agora parece que o tal presidente vai abrir um claro na agenda para visitar teu corpo, como se ele fosse grande coisa, esse engano político, essa tragédia que quer mais um mandato, mais um! Para quê? Mas, escaldado na experiência de Getúlio e Jango, aprendeste que apoiar um presidente eleito é mais importante do que qualquer outra coisa. Por isso apoiaste os presidentes por certo tempo, Brizola, porque Getúlio, do túmulo, te advertia. Claro que não entenderam esse gesto histórico, Brizola. Eles não queriam entender, queriam apenas te enterrar vivo.

PRESIDENTE - Agora clamam tua coerência, tua honradez, tua honestidade. Mas ficaram décadas falando mal da tua fazendinha no Uruguai, a mesma que compraste em troca do pedaço de terra a que tinhas direito em São Borja, e que quase perdeste, pois até isso os verdugos de 64 fizeram. Eles deram o golpe para impedir tua presidência Brizola. O regime de 64, que ainda está em vigor, tinha só esse objetivo: impedir que fosses nosso querido e amado presidente da República do Brasil. Conseguiram, Brizola. Ah, dor infinita dessa chance perdida. Tua plataforma era clara como água que brota do pampa: dar de comer a quem tem fome, dar escola a quem tem sede de saber, permitir dignidade ao povo brasileiro e soberania ao nosso território. Pois tudo isso é considerado passado, Brizola. O eterno presente é esse pesadelo de dor e violência, de morte certa em todas as ruas e casas. Caímos num horror sem fim. Quando chegaste do exílio, bradavas que mulher nenhuma poderia andar pelas calçadas do Brasil empurrando um carrinho de bebê. Porque temos carros, mas não ruas. Temos soja, mas não calçadas. Temos tiros, mas não trigo. Temos gente escandalizada porque teu estado ideal era o estado getulista. Eles preferem a República Velha, Brizola. Eles se acham modernos, mas Getúlio foi o inventor do Brasil moderno, como disse uma vez Samuel Wainer numa edição do Folhetim, da Folha, quando era editado pelo Tarso de Castro. Getúlio amparou o trabalho e a indústria, viabilizou a elite fora do garrote do campo e inventou o operário remunerado, implantou a infra-estrutura em Volta Redonda, a Petrobrás e a Eletrobrás (que hoje são sucatas do que foram, instituições de um país soberano). Foi destruído pelos donos do planeta. Estive com Samuel, estive com Tarso. Ia, no fundo, atrás de ti. Queria ser alguém próximo a ti, mas não deu certo. Por isso fiz aquele poema que deu título ao meu livro, No Mar, Veremos, dedicado a ti, pensando em ti, mas nunca falei isso para ninguém, porque me iludia que o poema poderia te transcender, fazer parte de outras paragens. Mas tu és o pescador de rio moreno, tu és o charrua de preta escama e é tu, Brizola, que vem do levante.

PÁTRIA - Tu é o cara, Leonel Brizola. O cara que precisávamos para ocupar a presidência. Mas foste embora sem realizar esse sonho. Ficamos com sarneys, itamares, collors, fhcs e lulas, sucessão de mediocridades criminosas, que baixaram as calças para os estrangeiros, que entregaram o país de bandeja para posar de estadistas. É coincidência, Brizola, que eu esteja em Florianópolis ao receber a notícia da tua morte? Lembro que aqui estava quando Glauber Rocha morreu. Quando finalmente volto para o Planeta Terra, para o Brasil que ainda existe, um punhal se crava sobre esses brasileiros das alturas, esses gigantes que nos abraçam com sua generosidade. Ligo a televisão e o que vejo? Pobres criaturas sem escola rebolando sem parar (para isso treinam o povo brasileiro, para rebolar diante do mundo pirata e bandido), publicidade sobre tudo, nada de cultura, nada de emoção, nada de arte, nada do teu funeral, Brizola, a não ser esses monstros vertendo lágrimas de crocodilo. E claro, tem o povo. O povo que agora chamam de choldra, patuléia, viúva. Mas que chamavas, com o maior respeito, de meus compatriotas. Compartilhamos a pátria, querido amigo. A pátria que não te viu no poder federal, como impunha a História, e hoje pagamos caro por isso. Hoje choramos de verdade, lágrimas de guerreiros diante da batalha perdida, mas trêmulos de fúria diante da guerra que ainda há de vir. Porque não és passado, Brizola. És História, e ela se faz com luta. O trabalhismo vencerá. Para isso, vamos mover céus e terra. Iluminados pelo teu exemplo. Carregados pela tua força. Lúcidos por tuas palavras. Tua morte desmascara os fantoches que dominam o país. Agora adiam a votação da merreca mínima, deboche contra essa instituição trabalhista, sucateada como todas as outras. Por que? Porque é uma vergonha, uma mesquinharia, diante do teu corpo presente, companheiro, amigo, patriota. Presidente que não tivemos, grandeza que agora herdamos, com os ombros pesados que levam teu corpo, enfim morto, para a eternidade.

RETORNO - Meu irmão Elo me envia mensagens de grande voltagem, que passarei a reproduzir nas próximas edições desta cobertura poética e política. Lenir de Miranda escreve: "Quando soube da morte de Brizola, pensei: isso não se faz, ele nos deixou a sós. Para minha surpresa, a frase de início do artigo de Nei Duclós era: "Agora estamos sós, Brizola." Minha geração presenciou os anos 60, 70 e agora sinto que aquele período heróico está se esvaindo... Mas, como poeira cósmica, logo estará iluminando, na lembrança, outras mentes esclarecidas. "Quem, se eu gritasse, me ouviria, entre as hostes celestiais?" Rilke"

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