A arte da luz entra no buraco negro do tempo. Aos cinco anos, me levam para um lugar escuro, onde apareciam rostos gigantescos, que tomavam conta de uma parede. Fui informado antes: “vais te assustar!” Cumpri a advertência e tiveram que me tirar no meio da sessão. Aconteceu no cine-theatro Carlos Gomes, que me ofereceu, na placa comemorativa, o primeiro desafio da linguagem: “a Carlos Gomes”, dizia a homenagem. Como aquele bigode todo do maestro poderia ter um substantivo feminino na frente? A estranha preposição, que vestia a roupa da primeira letra do alfabeto, assim como os filmes que sumiram no espaço, permaneceram misteriosos por muito tempo.
A BOBAGEM NO PODER - Quando falei em Maciste aqui em casa, a meninada achou graça. Nem acreditavam que existira um Hércules italiano que puxava um navio, a partir da praia, só com os dentes. “É muita bobagem”, diziam, diante dessa súbita aparição da memória. Meu segundo filme, o primeiro colorido, aconteceu no cinema vizinho, o “novo” – para diferenciar do Carlos Gomes, teatro que existia desde o século 19 e nos anos 40 foi reformado para se adaptar aos tempos cinematográficos. O Novo ganhou o apelido do dono, Corbacho. Esse filme foi basicamente uma cena – entrei no meio da sessão – em que uma carroça da cavalaria americana era empurrada pelos soldados em direção à areia movediça. Entrei na hora do ataque dos índios. Lembro dos bravos rapazes genocidas caírem como moscas, apertando no peito flechas ridículas, que pareciam penas de ganso – é pura verdade. Descobri assim, de cara, que era tudo mentira no cinema. Nosso senso crítico da fronteira jamais poderia aceitar semelhante excentricidade. Mas o incrível foi que ao longo daqueles anos, aceitei de tudo – e reproduzia junto com a gurizada as principais cenas, especialmente as do ataque a carruagens, que tinha o prêmio extra, só no cinema, da mocinha agradecida. Crescido, assisti a todas as asneiras que passavam, de filmes argentinos, mexicanos, franceses, italianos, espanhóis, brasileiros e até mesmo americanos. Vi Rastros de ódio, a obra-prima absoluta, aos 14 anos e fiquei acachapado na cadeira com a cena em que John Wayne abre a porta para retirar-se para sempre no deserto, naquele andar capenga que fez história. Só depois em Porto Alegre, quando aderi momentaneamente à moda da cinefilia, descobri que era de Ford.
TIROS EM GRANDE OTELO - Os filmes eram divididos em gêneros bem específicos. Existiam os filmes dos lenhadores canadenses, sempre de camisas quadriculadas – de flanela ou lã – não estou brincando. Havia uma série de filmes ingleses em preto e branco em que o Alec Guiness era o anti-herói permanente. Vi todos e só lembro o ator maravilhoso tropicando pelas ruas londrinas, mais nada. Nos faroestes, havia um gênero em que aparecia sempre o mesmo herói (interpretado por um jovem Jim Davis, o do sorriso maroto), que usava uma farda toda cheia de botão, dividido em duas histórias completamente diferentes uma da outra. Chamávamos esse gênero de “o abotoado dos dois filmes”. Para quem, como nós, não dispunha de nenhuma informação sobre o que víamos, adaptávamos a indústria do cinema ao nosso vasto mundo da cidade isolada do pampa. O pior é que até hoje nada sei sobre a maioria do que vi na época. Juro que assisti um filme em que o Grande Otelo foi assassinado pelos bandidos. Otelo urrava de dor – era uma sessão vespertina – e fiquei chocado: nunca mais veria nosso ator favorito na tela. Não vê que o estavam matando? Esse filme tinha também Oscarito. Os dois faziam papéis duplos. Cada um era bonzinho e mau ao mesmo tempo. Duas duplas opostas. Pois o grande Otelo foi assassinado. Que filme é esse? Ninguém fala, ninguém sabe. E juro que eu vi. O cinema brasileiro atraía públicos gigantescos. As filas dobravam a esquina. Multidões iam ver as trapalhadas dos comediantes, os beijos das heroínas, as cantorias carnavalescas. Era uma festa. Nos faroestes, havia sempre um palhaço a quem chamávamos de Bobota. Quem é o Bobota de Rex Allen? E o do Roy Rogers? Oscarito e Grande Otelo, ingênuos mas muito malandros, jamais eram chamados de bobotas. Isso era para americano trouxa. Tínhamos respeito pelos nossos gênios.
CHAMUCHALEI - Aí um belo dia, os filmes perderam completamente o sentido. Atores de olhos parados, nenhuma ação. Antonioni, Godard, Glauber. As pessoas saíam aos berros do cinema. O Processo, de Orson Welles, considerado sem pé nem cabeça (vi dúzias de vezes) quase provocou uma revolução. Como eu já estava querendo me livrar das prisões mentais da fronteira, via mais de uma vez, para tentar entender. Não entendia. Só meu amigo Gilberto Gick, príncipe da minha geração e que Deus o tenha, saía dos filmes do Godard na maior cara de pau fazendo ruído com a garganta de “huh”, com agás aspirados. “Huh, entendi”, dizia ele, sacudindo a cabeça afirmativamente e olhando para todos. Era o sarro que tirava dos pseudo, os que achavam que entendiam tudo. Ninguém sabia de nada. Mas aquela ruptura nos tirou do buraco negro da sandice divertida. O país e o mundo tinham mudado. Era o início sinistro dos 60. Estávamos, sem saber, prontos para o tempo mau que se aproximava. Nele até hoje estamos mergulhados. Aquele cinema oculto é o Mundo Perdido. Usávamos calças curtas, cabelo escovinha, revólveres e cavalos de madeira. Falávamos uma língua intrincada, adaptada dos ruídos que ouvíamos nas falas dos filmes. “Chamuchalei”, por exemplo, era mãos-ao-alto. Não me perguntem por quê. Também o Mundo Perdido era difícil de entender.
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