Todo dia era dia de solidão. Colocar a roupa branca de linho, passar uma escova no sapato, pentear o cabelo, sair olhando para os lados. Quatro quarteirões me separavam do cinema e da praça. Ainda era cedo para o footing. Podia pegar um filme. Quando não estava lotado, entrava já com a sessão adiantada. Sentava só, numa poltrona no fundo, ou “lá em cima”, longe da tela e perto do projetor.
SORTE - Depois da sessão, saía junto com um rio de gente. Meus irmãos tinham partido, as irmãs casado, os irmãos menores estavam perto, mas distantes. Os amigos se dispersaram. Punha as mãos no bolso e tentava a sorte. Passava pelo corredor entre os bancos e os carros parados. Cumprimentava alguém, todos enturmados. Eu andava pela praça, passava para a quadra seguinte (que hoje é um calçadão), ia direto para ver a vitrine da casa Jacques (que agora vai ser shopping) e terminava no Campana, que um dia tinha sido do meu tio Nico, único irmão da minha mãe. Era um enorme restaurante, com inúmeras mesas, todas com o açucareiro em cima, pois serviam cafezinho não só no balcão, serviço feito por garçons uniformizados. Antes dessa fase de solidão (já tinha uns 16 anos), quando era pequeno, íamos ao Campana tomar guaraná, crush, soda laranja, sorvete e picolé. Eram os verões gloriosos dos anos 50. Do flerte com as gurias mais bonitas. A perseguição física aos amores jamais correspondidos. Mexíamos com alguém e saíamos correndo. Às vezes, para casa.
Mas agora eu estava muito alto e muito grande para fazer essas coisas. Voltava do Campana com um giro nos calcanhares. Decidia então atravessar a praça na diagonal. Lá estava a estátua do Barão (que vi recentemente, com a mesma imponência, um Rio Branco imortal num pedestal de mármore naquela região da fronteira), a Branca de Neve com os anões, a pontezinha sobre o lago onde um dia haviam patos. A praça estava lotada, mas eu continuava só.
TURMAS - Decidia então parar na passarela do footing para ver as meninas de mãos dadas que passavam. Mas passavam também as turmas, as do violão, as do que capotam (filhinhos de papai que tinham carros), a dos que tomavam grandes fogos e a dos chatos. Estes, estavam também sempre sós, mas eu já tinha aprendido a me livrar deles. Quem se cria em cidade pequena não tem chance de se esconder. Precisa enfrentar a barra da humana presença cara a cara. Ou você tolera ou expulsa. Aprendi cedo a dizer não. Mas quando a solidão batia, sempre tinha jeito de escutar histórias intermináveis sobre a segunda guerra mundial (assunto que sempre detestei), sobre músicas sem importância. Muitas vezes, sentava eu quieto no canto do quiosque para tomar uma interminável coca-cola geladíssima. Ocupava a mesa por mais de uma hora. O dinheiro dava só para um refrigerante. Os garçons não gostavam. De lá, acompanhava as decepções: aquela garota que eu estava de olho sucumbia diante do charme de alguém. Desistindo do passeio monótono, passava em frente ao Clube Comercial. Lá estava o eterno porteiro, a olhar feio para a classe média para baixo. Como meu pai era sócio, às vezes eu forçava a barra e entrava, peitando a má vontade do porteiro, pois eu não me vestia adequadamente.
- Sempre branco, me diziam. Eu vestia linho, o mesmo todo dia. O cabelo curto, o corpo curvado . Chegava em casa, estava praticamente vazia. Tudo tinha ido embora. Chegava minha vez também de partir. Tendo completado o segundo científico, me preparava para ir à capital tentar o vestibular. Levaria ruas percorridas sem amigos, levaria meus sapatos pretos, minha calça de brim coringa (o jeans antigo), minhas blusas de lã, minha campeira (o casaco grosso que enfrentava o inverno que estava por chegar). Logo logo despontaria março e voltariam as aulas, quando enfim, teria chance de conviver com bastante gente. O verão era o deserto daquele fim de adolescência. Eu já era muito antigo, já tinha tido uma vida inteira na cidade que me vira crescer.
Quando chega o verão, minha memória passeia pelas largas calçadas. Um assobio insistente de outro solitário, longe. Risadas em frente de alguma casa. O barulho dos passos às onze da noite. O céu muito estrelado.
O Cruzeiro do Sul despencava como uma flecha em direção ao rio.
Eu já estava pronto. Tinha virado adulto. Mas levaria a criança que insistia em caminhar raspando a sola do sapato na calçada. Ou, como fazia um irmão meu, raspando o lado esquerdo do sapato no canto da parede das casas (que ficam rentes, grudadas nas calçadas).
Um dia, ele deu um chute num monte de moedas, perdidas por ali.
É assim o passeio de verão: um golpe de sorte e você está de novo no centro do mundo.
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