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19 de novembro de 2003

TODO O TEMPO DA PALAVRA

Antes de ser criada, a fala não está empilhada dentro de nós, nem fechada num banco de dados. O que dizemos é feito de matéria viva, que se alimenta do nosso sonho, do que percebemos por necessidade ou prazer, do que lembramos. Ela faz parte da forja que a inventa e não há divisão entre o ofício de dizer/escrever com o que é dito/escrito. Somos criadores de materiais mutantes, as palavras, e as usamos por meio do corpo e do ar para enfrentar a fome do tempo.

O PORTO FECHADO - A reflexão não prepara a linguagem, apenas esboça algumas linhas que não existem em forma de palavras, mas de castelos no ar. Construímos uma cidade nas nuvens enquanto andamos e dentro dela seres que falam a nossa língua nos sopram pontes reais, que nos levam a todos os lugares. Por isso implico com especializações, treinamentos, metas específicas. O que é humano extrapola os cadeados dessa cadeia que se formou ao longo do tempo, exatamente porque o poder teme a prática demolidora da linguagem. Colocou no lugar dela o que batizo de discurso, o palavreado fosco, a ferramenta-âncora. O discurso é um eterno porto em ruínas. Nenhum navio chega, nenhuma vela se enfuna. A linguagem, ao contrário, é a proa embicada para o leste, é saber navegar com a força do vento – a divindade. Chegou a hora de soltar as amarras do dizer, recuperar os sons perdidos dos sentimentos e sentidos, desfazer nós, atingir a gávea, avistar terra nova. Nunca tivemos tanta facilidade para cruzar nossas linguagens, de desfazer a teia bruta do discurso e atingir o topo da fala, em letra, imagem, movimento, música. Isso já existe, mas está disperso, lutando por um lugar mais destacado, fazendo onda na limpidez ferrada do porto fechado.

A LONGA ESTRADA - Um dia, quando estava ainda lutando para ter um espaço em São Paulo, recebi um pacote de palavras enviadas de além mar. Era o primeiro romance de Tabajara Ruas, a Região Submersa. Vinha a encomenda da Dinamarca, onde o autor amargava longo exílio. A música daquela ano de 1976 era Como nossos Pais. Li aquela síntese demolidora contra um regime político que já se mostrava exausto, um mundo estilhaçado em mil pedaços de linguagens, todas percorridas por esse romance seminal, que inaugurou, muito antes dos Gabeiras aportarem por aqui, o romance de combate da minha geração. Naquela época, tinha acabado de lançar meu livro Outubro, fruto de uma refrega de rua com meus leitores, de uma viagem com meus companheiros e de conversas com pessoas como Luis de Miranda, poeta e cidadão da liberdade. Os dois, irmãos de jornada, estarão na Feira do Livro esta sexta-feira, no encontro entre autores uruguaianenses. Lembro de Miranda me falando o que era a poesia, o que havia de concreto na palavra, sem ser concretista, no que havia de ofício no verso, no que tinha de cuidado com cada detalhe. Eu ainda era muito esparramado antes de escrever Outubro. Foi a convivência com meus pares que me fez acordar para o que havia de tensão na linguagem, no que havia de força na fala, no que havia de grandeza no andar. Nosso objetivo era a salvação pela criação literária, era ajudar a transformar o mundo começando a mudança por nós mesmos, homens feitos em busca de seus destinos. Hoje, quando Miranda carrega sua obra com orgulho e alegria pelas ruas, e Tabajara Ruas é um dos mais conceituados romancistas do Brasil (além de cineasta de sucesso com Netto perde sua alma) , sinto que nossa trajetória, longa, ainda tem muita estrada pela frente. Somos teimosos, somos escritores da fronteira, cidadãos de um mundo em desencanto, a carregar o fogo que alimenta o farol, o mesmo que acende aquele porto mudo, e que se reinaugura todos os dias.

RETORNO - 1. Continua a alta incidência de visitas e a calorosa recepção ao blog e ao meu artigo no Comunique-se. O www.outubro.blogspot chegou a receber um prêmio, o Killifish Award. Não sei exatamente o que é, até pedi mais informações. Não sei, mas já gostei.
2. Ainda acho que a obra-prima de Tabajara Ruas é Perseguição e cerco de Juvêncio Gutierrez. Precisa ser lido. Tive também o privilégio de ler datilografado.

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