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9 de novembro de 2003

O REPÓRTER DIANTE DAS CÂMARAS

Por que José Hamilton Ribeiro é o melhor repórter da televisão brasileira? O ex-correspondente de guerra, exemplar de uma linhagem do jornalismo brasileiro que deveria ser hegemônica em todas as redações, dá show no maravilhoso Globo Rural, o programa que todos gostamos de ver. Quando Zé Hamilton sobe na carroça para a passagem de uma matéria sobre o cavalo na cidade, é o povo brasileiro, no que tem de melhor, que nos leva junto.

RESPEITO E EFICIÊNCIA – A matéria a que me refiro acaba de ser veiculada. Foi feita em Passo Fundo, com toda aquela galeria de personagens que fazem parte da minha infância, já que o interior do Rio Grande do Sul é uma nação com identidade própria, mas não à parte, pois ajuda a compor o Brasil que nos enche de orgulho. O grande repórter faz a narração da matéria em versos, como se fosse uma trova gaúcha, dita naquele tom coloquial que nos cativa, ao contrário do que acontece normalmente, em que o tom do reportariado soa sempre como um misto de arrogância e estrelismo. O que me impressiona nos repórteres da TV é que eles estão convictos que estamos “no sofá” (expressão horrenda, que coloca o telespectador como um ser imóvel e preguiçoso) para admirá-los. Por isso apontam o dedo para a câmara a cada segundo, sacodem os ombros e fazem caras e bocas de canastrões insuperáveis. Acham que são atores, dando espetáculo, quando deveriam ser apenas repórteres narrando uma história. Zé Hamilton deve ser encarado como uma escola, não para disseminar a padronização do seu estilo, mas como exemplo de como deve se portar o profissional de imprensa diante das câmaras, mostrando mais o assunto do que a si próprio, intervindo para fazer fluir a narrativa, e respeitando a inteligência de cada interlocutor, fonte de conhecimentos que devem ser conhecidos por todos. Além disso, no Globo Rural, os apresentadores completam a matéria com uma sacada brilhante: a de que a mecanização da agricultura acabou empurrando os cavalos para as cidades, onde desempenham as mais diversos funções. Essa é mais uma lição desse programa imperdível: o apresentador não é um boneco exibicionista que só fala redundâncias (apropriando-se do trabalho do repórter ao repetir as informações contidas na matéria) ou que fica pontificando sobre o que não sabe. Nunca é demais repetir o que escrevi há anos: o jornalista é aquele que não sabe, por isso vive perguntando. Sua função é fazer a fonte decifrar a linguagem cifrada e veiculá-la de maneira eficiente. A especialidade do jornalista não é o assunto que aborda, sua especialidade é o próprio jornalismo, já que ele é mídia, meio. Não precisa, portanto, achar que é ator, fingir que é economista, historiador ou sociólogo. Basta ser o que José Hamilton é: jornalista, na glória absoluta da concepção dessa palavra.

MISSA E CHURRASCO - E já que falei do interior do Rio Grande do Sul, lembro que por muitos anos minha mãe nos levava à missa das seis da manhã nos domingos, quando ainda estava muito escuro (especialmente no inverno) para cumprir uma promessa que tinha feito. Éramos as únicas crianças naquele horário, povoado de velhos e velhas e carolas que entoavam os cantos de Davi. A missa das crianças era mais tarde, às oito, e às vezes comparecíamos nesse horário. Na volta da missa super-matinal das seis, acendíamos uma fogueira no quintal, onde tínhamos construído um pequeno galpão feito de caixotes (e que apelidamos de CTG Os Gaudérios, em homenagem ao conjunto musical que revolucionou a música regional e do qual participava meu atual amigo José Gomes, o maestro, cantor e compositor que fez e faz História na música brasileira). Lá acontecia o churrasco dos meninos, onde só criança (meninas inclusive) participavam. Meu pai liberava uma garrafa de legítimo vinho Liebfraumilk (naquela época um licor maravilhoso) e churrasqueávamos ali mesmo no pátio, dividindo o vinho entre oito ou dez pessoas (vizinhos eram convidados). Era um santo remédio contra o frio e transformava o domingo numa experiência única. Depois dessa pequena confraternização, tínhamos futebol e mais tarde, nas matinês, cinema – filmes brasileiros, seriados de aventuras, filmes de piratas e faroestes. Quem tem uma infância dessas é feliz para o resto da vida.

PESCARIAS - A exceção era a convocação do meu pai para enfrentar o mato - quando passávamos o fim-de-semana no mais completo isolamento. Dormir ao relento com uma temperatura de menos dois graus, ou abrigar-se numa barraca do exército que cheirava a uma gordura milenar, ou mesmo sair no campo para catar bosta seca de vaca para queimar e assim espantar os mosquitos, eram coisas para “virar homem”. Sem falar nos micuins, que davam terríveis coceiras, no barro infernal que emporcalhava o acampamento, na obrigação de lavar as panelas do almoço e da janta na beira do arroio, nas linhadas que ficavam tão maçarocadas que só meu tio Antenor, pescador de verdade, conseguia desembaraçar. Tio Antenor viva na beira do rio. Meu pai comprou uma casinha de madeira para ele, com uma novidade: tinha portas! Fomos visitá-los e todos os filhos e ele próprio estavam com os dedos inchados. A mulher dele (teve inúmeras na sua longa vida) gritava: “Olha a porta, Gibraltar, olha a porta Lindomar!” Também ganharam de meu pai outro presente, um fogão a gás. Mas jogaram fora. “A comida ficava com gosto de gás”. Rimos, mas é a pura verdade: nada se compara a uma boa comida com fogão a lenha. Tivemos fogo a lenha por muitos anos, capitaneado pela nossa cozinheira Rita, que Deus a tenha e que ajudou minha mãe a criar todos os sete filhos. As comidas eram fantásticas: até hoje jamais comi um peixe desfiado com farofa que minha mãe fazia, nem aqueles pastéis que meu Tio Waldemar conseguia fabricar desde a massa até o recheio, ou mesmo aquele feijão com arroz da Rita. Tudo isso para o paladar faminto de crianças devoradoras. “Vocês tem fome de gerações”, dizia minha mãe, que era muito magra, comia mastigando bem, tomava dois cálices de vinho na hora do almoço para dormir uma sesta dominical deliciosa, momento em que deveríamos fazer absoluto silêncio. Eis minhas memórias dos dias inesquecíveis de domingo, naquela época em que o Brasil era seguro e tinha estadistas de verdade. E o que era melhor: era um país tão tranqüilo que se dava o luxo de ter infância.

RETORNO – Meu genial editor Wagner Carelli – também conselheiro editorial do Diário da Fonte - me envia e-mail em portunhol. Sempre que eu esqueço que sou gaúcho (acontece, podem acreditar) pessoas como o Carelli me trazem de volta à realidade.

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