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27 de setembro de 2003

A SÍNDROME DA MOITA

Tornar-se invisível, guardar segredo sobre seus pensamentos, aturar estoicamente chefes e colegas e aguardar melhores dias faz parte da sobrevivência nos empregos. O importante é que a estratégia não vire vício ou defina sua personalidade. E, principalmente, que não seja usada contra os outros ou apenas para garantir seu espaço de maneira mesquinha.

OLHO BRANCO – Quando alguém mais poderoso joga pesado contra você, ignora-o propositadamente, escuta-o só para ordenar tudo ao contrário, não o convida para as reuniões, dá ordens diretas para a equipe que está a seu comando sem consultá-lo, ri toda vez que você fala sério e desvia o assunto quando você tenta contar uma piada, é sinal que você está condenado. Essa tendência não costuma reverter, já que o poder colocou o chamado “olho branco” em você, um olhar frio, distante e que o torna anônimo dentro do seu espaço profissional. “Olho branco não reverte” é a lei nessas situações. É hora de você ir procurar sua turma, encontrar outra ocupação em outro lugar. Costuma-se culpar o excesso de visibilidade, que atrairia o empurrão negativo do poder sobre você. É comum perguntar-se: e se eu permanecesse quieto no meu canto, sem dar muita bandeira, e se eu sacudisse afirmativamente a cabeça (com o cenho carregadíssimo de seriedade) nas reuniões, sorrisse na hora certa e obedecesse em todos os detalhes, mesmo que eles contrariassem o bom senso, seria diferente? É possível , mas essa é uma possibilidade virtual e remota, pois como mudar a própria personalidade? Quando o embate é frontal, fica mais fácil lidar. O grande problema é quando o teu chefe é mestre da moita, e te engana direitinho. Quando você menos espera, vira estatística.

GESTOS – O comportamento numa redação tem muitos gestos. Um eles, clássico (deve estar em desuso), é composto por mangas arregaçadas, gravata um pouco frouxa, casaco na cadeira, punhos fechados, ambos sobre a mesa, braços esticados e olhar penetrante para alguém na frente, um texto em cima da mesa ou para o infinito. Outro é cenho levemente carregado, um leve roçar da mão sobre a face (se tiver barba confiável, ou seja, trabalhada, melhor) e palavras certeiras ditas num tom casual. É cool. Os grandes mestres do gesto certo em redação são os mineiros, que tem muito a ensinar a nós, gaúchos, que caímos em várias armadilhas. Coisa de gaúcho é o andar duro, uma só mão no bolso e um ombro mais baixo do que o outro (como faz o rei da cocada preta, o Tarso Genro). Mas hoje todas as nacionalidades brasileiras se igualam na moita, ninguém dá mais bandeira. Foi-se o tempo em que o Tarso de Castro entrava com uma vassoura e uma enxada na redação e gritava, sacudindo alternadamente cada um dos objetos: “Este é o Médici! E este é o Geisel” ou coisa que o valha (nem lembro se eram mesmo vassoura e enxada, mas essa cena eu vi). Uma coisa que deve-se atentar são os ombros: não mostre seus ombros abaixados, senão você está identificado com a preguiça ou a velhice. Vi muito peru e perua subir na vida sacudindo os ombros enquanto falavam. Transmite sinal de sempre-alerta.

VOZES - O machão é rouco, a feminista é fanha. Falar ao mesmo tempo em que o seu “concorrente” (aquela pessoa derrubável) tenta dizer alguma coisa, é uma maneira de afastá-lo. Transmitir recado como se passasse uma bola quadrada, também. Pedir desculpas depois de sentar em cima de um pedido, esperar estourar o prazo e só terceirizar a encomenda minutos antes da data, é a maneira mais eficiente de acabar com alguém. Tornar obrigatória a saída conjunta para o almoço e forçar visitas de fim de semana fazem parte do cerco a alguém que tem algo para oferecer no emprego. Todos esses expedientes, execráveis, foram apresentados para mim durante décadas. Acumularam-se na minha cabeça de maneira tal que, para me livrar, tive de sair várias vezes para não estourar. O gesto maior numa redação é o sorriso sincero. Tive essa experiência com meu amigo Dorival Pacheco, já citado aqui, e a quem dediquei meu segundo livro de poemas, No Meio da Rua. Num deles, dedicado a esse que se foi antes do tempo, intitulado “Poema gritado da janela do ônibus”, anuncio os “ventos da mudança”. Não mudou nada, ainda, Dorival. Não mudou nada, meu querido amigo. O que permanece é a tua generosidade. Você, que me recebeu sorrindo depois de um longo e tenebroso desemprego, que sentou na minha frente durante meses e que repartiu comigo a vida dura de uma redação apertada, mal paga, mas vibrante, na Folha da Manhã, de Porto Alegre.


Perfil – Reginaldo Fortuna

A CHAMA DO GÊNIO – Por ser ético e jamais usar nenhum expediente para se promover ou derrubar alguém, e principalmente por ser gênio, Fortuna fez História no jornalismo brasileiro. Não era apenas um desenhista primoroso, um chargista, um humorista. Era um diretor de arte, um inovador e Mestre. E escrevia magistralmente.

Quando conheci Fortuna no final dos anos 70, época em que foi chamado por Tarso de Castro para fazer o Folhetim, da Folha de S. Paulo, não cheguei a me tornar amigo dele. Só em 1988, quando fui assessor de imprensa e precisei de um diretor de arte para lançar o Softpress, é que me aproximei bastante desse gênio brasileiro, que amargou longo exílio interno depois de tanto fazer pelo jornalismo. Fortuna era muito mais que um cartunista seminal, mestre do traço e da piada política. Escrevia como poucos e, leitor de Gutemberg, era criador visual de primeira, com extrema lucidez no olhar, capaz de detectar um desvio de meio milímetro num fio mal colocado (antes da computação). Fortuna queixava-se bastante da injustiça que fizeram ao Tarso em relação ao Pasquim. Para Fortuna, o Pasquim foi obra de Tarso e não dos outros colaboradores, que eram apenas coadjuvantes.
É preciso destacar também o trabalho revolucionário de Fortuna na imprensa empresarial, onde criou vários projetos gráficos. Por exemplo: como diretor de arte do jornal Softpress, entre 1988 e 1990, ele contribuiu para mudar a concepção gráfica dos jornais empresariais, sepultando definitivamente a fase do amadorismo visual do setor. Antes de Fortuna, havia consenso de que jornal empresarial deveria ser feito sem a excelência gráfica da grande imprensa (não falo dos projetos especiais, como a maravilhosa revista da Good-year, falo das newsleters e dos house-organs ) . Ele também mudou isso. Num dos Prêmios Aberje, do qual fui um dos jurados, pude verificar dezenas de exemplos de "filhotes" do projeto gráfico de Fortuna.
Como diretor de arte, Fortuna se considerava, com justa razão, um clássico, que se inspirava nos clássicos. "Minha diagramação é suíça", costumava dizer, definindo-se como adepto da linha reta e do visual enxuto e preciso. "O projeto gráfico do Pasquim deu certo porque eu fazia a diagramação suíça e o Jaguar estragava tudo desenhando o Sig." Citava Gutemberg (o original) e lembrava que as margens dos livros foram feitas para colocar o polegar. Escandalizava-se com a falta de cuidado com que são confeccionados os livros hoje ("não dá para abrir", dizia). No lançamento do seu livro "Acho tudo muito estranho", onde fiz o texto de apresentação, quase ninguém compareceu. No Brasil "democrático", Fortuna amargou seu verdadeiro exílio. Mas nunca deixou de criar. Onde estivesse, ele era o Mestre.


RETORNO – Duas belas notícias. O nascimento do primeiro neto do meu irmão Elo (o rebento é neo-zelandês e chama-se Erik) e do primeiro filho do meu amigo Anderson Petroceli (é uruguaianense e chama-se Leonardo). Evanildo Silveira, do Estadão, gaúcho dos quatro costados, quer marcar um chope pampeiro, junto com o Antônio Gaudério. Vai sair chispa de facão. Cuidado. Vai misturar Uruguaiana, Santiago e, acho eu, Porto Alegre. Uma coisa é certa nessa chopada: ninguém vai moitar.

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