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26 de junho de 2024

NA PORTA DO CÉU

 Nei Duclós 


Velhice é adaptação. 

Chamam de terceira idade e você aceita.

Vem os cabelos brancos e você acha um charme.

Começam as rugas e você não se importa.

Os cinco sentidos regridem e você acha natural.

Começa a andar trôpego e compra uma bengala.

É xingado ao volante mas você se acostuma.

Ninguém mais te dá a mínima e isto parece um alívio.

Você não sai mais de casa mas tem a Internet.

Tua geração inteira vai para o saco e você se sente um privilegiado sobrevivente.

Não dá mais bola quando perguntam se tomou o remédio "direitinho".

Diz consulte o Google quando perguntam qualquer coisa.

Sabe que a experiência não traz mais sabedoria.

Não se desespera quando as palavras somem da mente.

E aí vem o Alzheimer e você esquece tudo e se livra até de recomeçar.

Pior é confundir a própria identidade e ter de berrar para São Pedro, surdo depois de dois mil anos:

- Sou Jack o Marujo. Me deixa entrar antes que eu me esqueça.


Nei Duclós

22 de junho de 2024

PRIMEIRO AMOR

 Nei Duclós 


Quando desisti do primeiro amor

Contraído aos 13 anos sem noção 

E perdi o caminho da paixão 

Que em menino me transtornou

Desisti por me achar um sonhador 

A cultivar fantasias, por favor!

Eu não sabia que sem querer abria mão 

De todo amor que viria bem depois 


Nem que eu teria chance com você 

Bailarina do rosto sem igual

Bastaria ser só o que senti

Ao te ver em todo o esplendor


Nei Duclós

20 de junho de 2024

NA CURVA

 Nei Duclós 


Pareces de trança, em foto antiga. 

Mas são só sardas, em imagens vivas. 

Te pego na curva, com teu vestido. 

Toda de versos tecida.


Nei Duclós

10 de junho de 2024

VARAL

 Nei Duclós 


No primeiro sol expus a roupa

Que a máquina lavou de madrugada

São algumas peças, a oferta é pouca

Não encontro os modelos adequados 


A indústria trata com suspeita

Quem extrapola as medidas do esquadro

Escassa vinha para quem é grande

E não tolera números apertados


Assim fico sem meia ou sapatos 

Pois não se encontra mais 44

Vendemos tudo, dizem sorridentes

Os balconistas cretinos do mercado


Devo importar tudo da Tartária

Aqui só temos uniformes bem pequenos

E chapéus que não cobrem a carcaça


Mas o que tenho serve, mesmo que eu repita 

Todo dia a mesma indumentária 

Como a calça jeans que eu sempre usava

Quando vivia pobre sem salário 


Nei Duclós

FOLHETIM

 Nei Duclós 


Descobri tardiamente certo best-seller

Pois moro confinado num pequeno espaço 

E nunca saio fora dos redutos 

Onde conservo poucos livros sóbrios 

Os que não alimentam modismos literários 


É uma descoberta triste ver tanto sucesso

Que já não faz efeito pela ação do tempo

Mesmo que seja recente no calendário

E a fila de autógrafos ter dobrado a esquina


É como chegar atrasado no funeral do amigo

Restas flores murchas sem nenhum sentido 

O que foi homenagem agora também morre

E o sepulcro solitário amarga esquecido


Não que eu despreze o frisson das vendas

O alvoroço às vezes acerta, mas é raro

Tenho volumes preciosos em meus armários 


Normalmente isso que parece o máximo 

é apenas o recorrente marketing

Prove esta novidade você se sentirá nobre

Dentro da grande redoma do privilégio 


Melhor ficar na tua, ogro perverso

Leia a Lua, que não te engana à toa

Ela publica capítulos de um folhetim modesto 

Que são as fases que não somem nunca

Pois sempre voltam como o amor eterno 


Nei Duclós

9 de junho de 2024

GAIA

 Nei Duclós 


Ventos: a terra respira.

Rios: o sangue circula.

Mar: existe uma alma.


Montanha: Deus medita.

Lagos: os anjos se banham.

Selva: o jaguar te enxerga


Nuvens: o céu cria filhos.

Raios: gigantes rabiscam.

Chuva: o sonho descamba.


Noite: manto de estrelas.

Dia: chapéu de brisa


Inverno: o avô pega o ônibus.

Verão: um jardim de formigas.

Outono: um tio puxa briga.

Primavera: a rosa desfila


Deus: o fim é o início.

Homem: irmão de sementes.

Mulher: mudança de tempo


Praia: Netuno é criança.

Velas: há um motor na esperança.

Porto: o amor vem à tona


Sonho: o passo imagina.

Vigília: o olhar está frio.

Sono: a vida se abriga


Nei Duclós

7 de junho de 2024

OS MELHORES DE NÓS

 Nei Duclós 


Os melhores de nós foram embora

Afogados, feridos, devastados

Junto com suas cidades, animais, casas

Construídas por mais de uma vida de trabalho


Foram vítimas não do clima ou do ambiente

Mas dos demônios 

Mestres do dilúvio provocado


Hoje há um Rio Grande do Sul no céu 

Flutua nos campos e coxilhas das nuvens

Os ponchos batidos pelo vento são aves migratórias 

E a lua o olho que pisca para nós em fases distintas


Foram embora os melhores de nós 

Façamos por merecê-los 

Fomos salvos porque serviram de modelo

Da luta, da fé, da esperança 

E do amor, que é o nome próprio da terra


Nei Duclós

MERGULHO

 Nei Duclós 


A fé é profunda como o alto mar

Fico na superfície sem me assustar

Busco a praia que ainda dá pé 

Nas ilhas de submerso olhar


Ignoro as criaturas abissais

Os milagres dos santos e dos jograis

Os perigos da correnteza e do por-do-sol


Acredito que chegarei ao meu lugar

Para ser recolhido no exausto porto


Tenho fé que aprenderei a ser melhor

Mergulhador que respira por amor


Nei Duclós

6 de junho de 2024

A VOZ DO ANJO

 Nei Duclós 


Não releio, não reescrevo

Assim mantenho intacta 

a voz do anjo na letra 

Que sopra já corrigido

O escrito no Paraíso


Alguém lá deve orientá-lo 

Na sua faina esquisita

De repassar aos humanos

A incerta literatura 


É certo que não escuta

Conselhos de veteranos

Possuídos de parâmetros 

Volumes de capa dura

Recitais de enorme fama


Meu anjo jamais descura

De rasgos tonitroantes

Mas antes faz uma escolha

Prefere a profunda música 

Do verso morto de fome 


Assim encarno os cadernos

E as asas do anjo roto

Empresto só a caneta

Mediunidade fajuta


Sou o poeta das nuvens 

Onde moram os espíritos

Talvez seja eu um deles

A ditar o que publico 


Nei Duclós

4 de junho de 2024

AGRADEÇO

 Nei Duclós 


Agradeço pelo que tenho

75 anos de vida

Uma casa, uma família 


Agradeço pelo que tenho

Criado em casa da esquina

Frente ao colégio marista


Agradeço pelo que tenho

A prosa e a poesia

Em mais de 40 livros


Agradeço pelo que tenho

A fé, que não me abandona

E o sonho na biografia 


Agradeço pelo que tenho

Ter estado na Paulista

Morar em Santa Catarina 


Agradeço pelo que tenho

Uma saúde para o gasto

E um mensal benefício 


Agradeço pelo que tenho

Em cada canto um amigo 

E o prazer da fantasia


Agradeço pelo que tenho

Um país, amor maior

E gaúcho, minhas raízes 


Nei Duclós


Nota: não é meu aniversário, que é em outubro. O poema é inspirado nos sobreviventes da enchente, que agradecem pela vida. Precisamos seguir essa lição de tanto sofrimento e agradecer o que temos.