Páginas

27 de novembro de 2023

AURORA

 Nei Duclós 


Fiz por amor e isso me basta

Mesmo que digam tudo ao contrário 

E eu vire mendigo nas ruas da praia

E seja esquecido no ardor literário 


Fiz porque quis, teimoso ordinário 

Contra o destino seguro dos pares

Cruzei o mar em canoa furada

Beijei a lona ao cair do trapézio 


Fiz para ver o que havia de sério 

Fingindo sorrir na brutal plateia

Sou aprendiz de velhas escolas

Estudei latim nas cadeiras de lata


Agora estou pronto para entrar no baile

Onde me esperas ansiosa e tão bela

Contando nos dedos os dias que faltam

Para eu inventar o momento da aurora 


Nei Duclós

SOMOS O TEMPO

 Nei Duclós 


O tempo somos nós, precários datados

Por um tempo acreditamos na eternidade

Até que o tempo girou a aldrava

E fomos confinados no tempo sem volta 


O tempo são os outros, presenças de glória

Arroubos de portentos, geniais boquirrotos

Nada os derruba em sua fome maleva

Nem mesmo o vento que sopra do polo


O tempo é a infância moleque de feira

Que cresce e vira gente, tirano de aldeia


Agora estou sem tempo para tanta história 

Dizem que me repito mas é moeda de troca

Falo o que o tempo me dá em memória 


Sou do tempo que existia o

jogo de bola

No terreno baldio das calçadas pobres


Nei Duclós 


CÉU DA TERRA

 Nei Duclós 


Ganhamos a vida para perdê-la 

Lutamos por ela até o osso

Nos afogamos com água no pescoço 

Não desistimos de viver por nada

Achamos ser eterno plantar no sal grosso

Falamos de amor então ficamos velhos

Surra de relho, bruto ferimento


Só tu, que veio da terra que o céu promete

Faz valer a pena esse fuzilamento 


No último amanhecer é que sabemos

Diante dos algozes o quanto somos firmes

No tempo que nos coube em guerras de extermínio


Nei Duclós

26 de novembro de 2023

TROVA

 Nei Duclós 


Guarde segredo

Num lugar seguro

O frágil  brinquedo

Desse amor tão  puro


A trova é uma forma

De fazer poesia

Que o povo aprova

Para que todos entendam


Disfarce perfeito

Para quando o perigo

Ronda as palavras

Com a lei da censura 


Parece inocente

A crítica dura

O verso chocante 

Fazendo firula


Fica divertido

Dizer no ouvido

Aquilo que grita

E que foi proibido


Nei Duclós

23 de novembro de 2023

GIGANTE

 Nei Duclós 


De repente comecei a crescer 

Não falo do menino que vira adulto 

Mas do idoso que dobra de tamanho 

E precisa mudar de casa

Sair do subúrbio para se esconder no ermo   


Assim mesmo me cercaram

Criaram o turismo do gigante 

Jogavam-me frutas que não me satisfaziam

Precisava de proteína para segurar a barra


E assim vivi, atração num zoo de meliantes

Até que me reduzi ao velho metro e oitenta


Ninguém entendeu nem explica

Esse fenômeno besta

Acho que foi excesso de poema


Nei Duclós

PODER DAS PALAVRAS

 Nei Duclós 


Jamais ponha palavras na boca das palavras

Elas se seguram por si próprias 

São o que dizem e não arriscam

Armadilhas do sexto sentido 


Não se dedicam a transes mediúnicos

A valsas nas entrelinhas

Falam sem inúteis conflitos

Sem falsas intenções ou mera filosofia


Palavras não prestam contas

A fóruns privilegiados

Nem se sujam pela popularidade


Também não fazem parte

De ágapes exclusivos

Não apostam nas finanças 

Ou perdem tempo com a idade 


As palavras são palavras

São feras ao relento

Mordem a lua e te prendem

Com seu poder de sementes


Nei Duclós

20 de novembro de 2023

VIAJANTE

 Nei Duclós 


Basta a minha palavra

Para evitar teus cuidados 

Tuas sinceras dúvidas

em estado de dicionário 


Meus sumiço por um tempo

Te deixa cheia de dedos

Traição, dizes, ou então 

Trabalhas na espionagem 


É o excesso de cinema

Que gera a imaginação 

Não participo da guerra

Nem faço filmes de ação


Sou um caixeiro viajante

Pelos confins do sertão

Vendo roupa de senhoras 

Sob a mira de facão


São maridos desconfiados

Como se eu fosse ladrão 

Não tenho culpa se atraio

Com as rendas da ilusão 


Peço que me compreendas

Trabalho em pleno calor 

Por ti eu guardo dinheiro

Para casar por amor.


Nei Duclós

18 de novembro de 2023

UTOPIA

 Nei Duclós 


De tudo me afastei, filho da tempestade

Obedeci a lei de quem criou o mundo

Varreu-me o vento fora da cidade

Em frente ao mar soltei minhas amarras


Não fui eu quem compôs as profecias

Nem guardei os textos em antigos jarros

Nas grutas do deserto por pastores de cabras 


Mas soube desde sempre ser predestinado

A esquecer o mundo perdido na utopia

Para repor a palavra da grave humanidade 

A mesma que acordou antes que fosse tarde


Sou o sujeito sem História 

Meu alimento é o grão e a pura água 

Escute se quiser, ainda há margem

Traga um coração, que está fazendo falta


Nei Duclós

16 de novembro de 2023

A HORA

 Nei Duclós 


Quando não sentir mais conforto em me deitar

E nenhuma fantasia me satisfizer 

E perder o sentido ao acordar 

Sem ter motivos no entardecer

E os dias repetidos em rotinas de dor


Saberei que chegou a hora, meu amor


Vou fazer as malas para te buscar 


Fique onde está,

Que eu chegarei,

gloriosa flor


Nei Duclós

12 de novembro de 2023

DESPERTAR

 Nei Duclós 


A Criação não é medida em dias da semana

Mas em rodízio de infinitos

De um tempo randômico desumano

Entre pedras, água, areia, luz, vento e bichos.


Manhã clara e cristalina

Convite ao convívio

Céu limpo, mudos ruídos

E a lua de dia transparente

Pingente, que assina

Um novo armistício


Novembro começa para valer 

Alma de menino


Nei Duclós

VERDADE

 Nei Duclós 


Contarão esta história mil vezes

Mas não da minha maneira

Que é a verdade à vontade verdadeira

Sagrada e secreta

Para ser lida agora, no futuro

 

Pode parecer mais uma mentira

Uma versão sem vez na arena

Mas é o que eu sei

Do final dos tempos


Ora, direis 

Ouvir profetas


Nei Duclós

PROMESSA

 Nei Duclós 


Nada pode o poema contra a bomba

O verso não impede a ação do fogo

Soneto não resgata a esperança 


Talento não cicatriza os pontos

A inspiração foi posta fora de alcance

Literatura não serve de consolo

Profecias são tragadas pelo incêndio 


Abaixo do chão, roemos as raízes

De uma danação de loucos testamentos 

Não faz falta a canção amiga

Só existe o show da indiferença 


Os anjos que sopravam poesia

No ouvido de quem acreditava

No poder da palavra ainda viva

Estão hoje todos ocupados  

Em salvar o que sobra do destino


Tudo queima, as cidades, a mata e o Atlântico 

O mar sofre a crise de confiança 

A justiça foi chutada para o lixo


Não me peça estrofes sorridentes

Nem me cobre por não fazer denúncia 

Sou da massa de sobreviventes

Guardo na memória um novo tempo


Promessa que não se realiza

Mas espera no ventre o que se cumpre


Nei Duclós

8 de novembro de 2023

BRINQUEDO

 Nei Duclós 


A palavra é meu brinquedo

Chocalho ainda no berço 

Trem andando no tapete

Futebol entre paredes


A palavra é meu coelho 

Cartola em circo mambembe

Gibi trocado em cinema

Revólver que mete medo


A palavra fica à margem

No caderno de poemas

Posso inventar as paisagens

Falsa história de mim mesmo


A palavra impressiona

Parece real e ter peso

Mas basta um gesto mais tenso

Para sumir para sempre


Fica um verso, um soneto

No ar como pluma ao vento

Para gerar nova gênese 

Feita por Deus, que é poeta


Nei Duclós