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31 de março de 2020

MOSTRAR A VERDADE

Nei Duclós


Prefiro mostrar a verdade
E refazer o clima depois de quebrá-lo
Não por maldade
Ou falta de tato
Mas pela natureza que me define
E o fôlego de um encontro
Que poderia esfarelar-se
Na primeira esquina

Você fica na desvantagem de um sujeito avesso a fantasias
Poeta de árduo trigo
Cultivado nas planícies
Onde vivem as estranhas criaturas
Esquecidas



INACESSÍVEL GRUTA

Nei Duclós


Tudo me tranca
Por isso emudeço
Só posso falar por poesia
Overdose de verso
Pilhas do oficio

Escolha um papiro
Dorso talhado em argila
Quando a palavra, barro
Aguardava o sopro imortal
Da tua leitura

Releve a insistência
Deste autor peregrino
Sem pouso nem circo

Procuro o amor
Na inacessível gruta



29 de março de 2020

SARDAS

Nei Duclós


Dividimos a mesma cela
O medo e a morte nos confinam
Somos agora íntimos
de uma falsidade infinita
Fila para emitir abobrinhas
Reunião de escassez na cozinha
Mente entupida

E a lembrança de um tempo
Em que éramos desconhecidos
E eu te desejava sem haver motivo
Talvez pelo teu andar, teu sorriso
Gata de mil manhas felinas
A me fazer de trouxa
Entre a noite e o meio dia
E se aproximar só quando eu ameaçava desistir
Sardas do barulho



PÁSSARA

Nei Duclós


Evito a poesia
Mas ela mora comigo
Dribla o labirinto
De salas e corredores
E me visita quando estou distraído

Não admite a fuga
Na extrema quarentena
É pássara de convento
Arrulho de confinamento

A cada poema ela voa
Céu de futuro inverno



MADELEINE

Nei Duclós


Amamos de memória
No mapa dos corpos isolados
O sabor da madeleine
O doce cheiro que foi embora
Marcas do toque em tua flora
Trilhas jamais repetidas
Namoros que viraram pó

A brisa em tua penugem.
Cabelos que descem aos pés, ninfa gloriosa
E a falta que faz reu rosto proximo
Em minha inútil obra



27 de março de 2020

RESCALDO

Nei Duclós


Não faço mais planos para o futuro
Só para daqui a pouco
Quando vieres nua
Filha de Afrodite, sacerdotisa do assombro
Pele que a distância embala e nutre

Nossos corpos vazios de repente despertam
Abraços virtuais êxtase de poesia
Beijos que o sabor inexistente pressagia
Encontro de rostos desconhecidos

Amantes por um dia
Mas há o rescaldo
Te aguardo, mensagem cifrada de pitonisa



AZUL CELESTE


Nei Duclós

Assim, de tarde
Aproximas o olhar azul celeste
Não tinha notado teu pouso distante
Tu gazela em mim, urso do outono

A selva emudece
Foram todos para outras terras
Ficamos para apaziguar os deuses
Com o sacrifício das nossas garras



BOCA DO VULCÃO

Nei Duclós


Passe ao largo do poema
Há outros afazeres
Verso não nobilita
Já existe a oração
Para a alma aflita
A comunicação
Para a política
O texto na escrivaninha
Não pegue golpe de ar
Com tanta rima
Não se contamine com a poesia

Viva sem, afaste a tentação
De ser afagado pela lua
De navegar na boca do vulcão
De encontrar Deus lendo Lorca ou Dante

Seja prudente
Evite cair na armadilha
E se cair, se encante



NUDEZ DE PEDRA

Nei Duclós


Acabou o assunto
Fomos reduzidos à nudez da palavra
A única que permanece
Enquanto nós, osso carne e vísceras
viramos pó, memória
Palavra enfim
Liberada do que vimos sentimos dissemos
O contexto é uma ilusão
Assim como o verso e a prosa

Só existe esse objeto para malhar em ferro frio
Pois não há mais fogo forja fagulha
Apenas o fole a tentar reanimá-la
Mas a palavra é pedra
Que assume a máscara do que fomos
Sem deixar outra pista



ESPELHO

Nei Duclós


Pairo acima das nuvens
Bebo o sol em seus redutos
Livre da humana tragédia
Lugar do encontro contigo
Cálice de raro absinto
Vinho de além serrania

Tua claridade alimenta a fuga
Do barro que sou eu escrito
Do mundo em situação de rua
Do tempo que cansou da vida
Do vento que no sul se abriga

Pairo acima do espelho
Teu reflexo me dá guarida
Não me vejo mais, embora exista



24 de março de 2020

VEM DO ORIENTE



Nei Duclós

Já não havia futuro quando estávamos juntos
Separados por conflitos permanentes
Agora que proibiram qualquer encontro
Sabemos que era destino o que parecia supérfluo

Não tiramos lição de nenhum evento
Somos assim, piores do que os selvagens
Mesmo o virus, ou o meteoro
Não mudarão nossa vil natureza

Só há o amor, estrela de luz distante
A tentar esclarecer o lado oculto dos satélites
Luas nascem no horizonte tenso
És uma ventania que vem do Oriente



SOBERANA


Nei Duclós

Agora que somos íntimos
sem nos conhecer, deixa
eu te dizer: seja generosa
rosa do gênero, glória
de encanto supremo e faça
de conta que me tens
em conta mesmo sendo eu
o sujeito de cabeça a prêmio
procurado por querer-te
sem o cacife à altura
do teu cargo de soberana




21 de março de 2020

GUARDIÃO


Nei Duclós


Ponha de lado o que digo
Abrace o que vem do fundo
A palavra, pobre mendiga
Fica muda e sem domínio
Quando roça a superfície
Dela só ouves o grito

O que vale vem da gruta
Onde o tempo, irremovível
Risca as paredes antigas

É o poema, anterior ao trono
E às lambanças da politica
Sagrado templo de outono
Guardião de águas divinas



FINAL DA LINHAGEM


Nei Duclós

O mundo estava vivo quando veio a profecia
A palavra não é o fato consumado
Quantas vozes calarão as trombetas?
Deus desvia o rosto se houver coragem
No barro lavramos nova escritura

Não será desta vez o final da linhagem
Se for preciso, às nuvens levantaremos o braço
Mesmo precários, insetos numa jaula
Somos arautos na forja das estrelas



DE MANHÃ

Nei Duclós


Éramos eternos com nosso olhar sobre o passado
E tudo estava confinado a antigas guerras
Só que a griffe da vida a que nos acostumamos
Mostra a face real dos genocídios

A morte senta de manhã à mesa
E desmascara o ridículo dos conflitos
Que importa o dinheiro a politica se estamos cercados?

A poesia precisa vir em socorro
Não para dourar a pílula nem adoçar o pesadelo
Mas para devolver o que perdemos
A razão de ser humanos, o amor que a tudo vence



12 de março de 2020

ELVIRA

Nei Duclós


Elvira é a irmã com nome da minha vó
A viúva filha de italiano que criou quatro filhas
e o primogênito Nico
Só conheci um retrato desta vó que ficava em moldura oval na parede
Rosto de perfil vestindo luto pesado
Perdeu cedo o marido para a tuberculose
Que lhe deixou um pedacinho de terra
Herança das sesmarias dos Carvalho

A Elvira que nasceu da minha mãe era diferente
Próxima doce cultivava o silêncio
Foi embora cedo também, a professora casada com militar e que não deixou filhos

Algumas mulheres desta familia com tantas delas
Tias primas irmãs mãe
Mulheres em volta do ninho
Onde pia o poeta menino
Na correria do amor e do carinho

Quando cresci demais e todos riam
Elvira sorria para mim
Eu me sentia com domínio
do meu corpo e meu destino



TOMBO DA ANDORINHA

Nei Duclós


Querias um amor mas tu já tinhas
Que é tu mesmo, andorinha
Por isso não faça ladainha
Por ter perdido quem nunca foi teu

Já sabias mas continuaste
A mentir que voavas de carona
Depois o tombo não por desconsolo
Mas pela teimosia frente ao muro

Não quer dizer que num belo dia
não encontres quem te queira de verdade
Talvez seja eu, pastor de ventos
Morador em lugares fora da cidade



O MELHOR DE MIM


Nei Duclós

O melhor de mim está na madrugada
Salas escuras quintais com lua
Fantasia no lugar das armadilhas
Deita comigo o acervo da doçura

O dia ainda não voltou da rua
Está na balada tomando todas
O tempo adia o toque da alvorada
O amor aproveita o breu e sonha

O melhor de mim pousa no silêncio
Para ouvir teus passos mas recusas
Único defeito que comete a musa
Levar o coração e sumir para sempre



CÉU ESPESSO


Nei Duclós


Todo início de século parece ser o fim do mundo
A guerra de 14 a gripe espanhola
Napoleão celebrado por Beethoven
A ressaca das revoluções traídas do povo

O fim das torres gêmeas o terrorismo
Barcos de migrantes, incêndio em Notre Dame
Nenhum livro que permaneça
Nenhum verso nos recitais agônicos

Uma nova peste as fronteiras fechadas
Para onde fugir se não há mais refúgio
Ilha deserta em mares nocivos

Resta apenas esse laço entre o amor e o pânico
Alma encomendada liturgia de assombro
E o céu espesso a insistir na lua



SOLIDÃO É A MINHA


Nei Duclós

Solidão é a minha
Que na gruta se limita
Câmara escura de paredes ocultas
Onde se reflete a imagem lá de fora
Rebanhos pendurados em abismos
Mato pegando fogo pomares inúteis

Preciso lembrar a rota que me trouxe aqui
Brutos comboios pálidos fugitivos
Que em sonho me acompanham
Ninguém poderá decifrar o rupestre enigma
Cervos flechados bisontes em riste
Espirais e riscos da minha mão gigante



ADJETIVOS

Nei Duclós


Voltei aos adjetivos
que abandonara no ofício
O rigor se esgarça
em tempo de pandemia

Deveria insistir
na lide substantiva
ou quebrar o verso
em mil pedaços de vidro

Mas precisei dos despojos
das classes de poesia
Dos monturos de palavras
esquecidas ao ar livre

De todo amor me visto
Com as cores do arco iris
Poder de sonoridades
Extintas no raciocínio

São doses de coração
Funcionam como vacina



8 de março de 2020

O CINEMA EM HARRY CALLAHAM

Nei Duclós

Um diretor de cinema (Liam Neeson) cria uma lista fictícia de celebridades a serem assassinadas. Mas um funcionário seu rouna a ideia e a põe em prática no mundo "real"(o filme que estamos vendo).

Harry Calaham (Clint) faz parte da lista do assassino pois torna-se uma celebridade ao prender um chefe da máfia. O policial durão despreza o cineasta de terror e quer distância da imprensa, mas usa uma repórter para solucionar o caso.

Harry Callaham na lista negra e de 1988 e tem curiosidades como o jovem Jim Carrey fazendo papel de rockeiro siderado e uma paródia da perseguição de carros em São Francisco de Bullit, de 1969; só que é um carrinho por controle remoto que persegue.

Todo filme é sobre cinema. Harry é personagem de uma série e move-se num cenário de filme de ação. Está na cara.

POESIA PURA

Nei Duclós


O que seria poesia pura?
Não a pura de pureza
De alma limpa
Ou a mínima

Não seria a seca de geômetra
Ou a fluida fingindo ser natural

Mas a poesia do enigma
Que a ela se reporta
E que não é poesia
Mas nuvem no chão
De onde sai a palavra
Que incorpora no batismo

Pura poesia sem vínculo
com o verso que lhe amarra
Mas com ele junto
Mantendo o mistério em si
Da arte que ninguém domina
A não ser uma divina
composição escura

Espécie de blues
ainda não explícito
Que tem sua origem
antes do concerto
e nele se desdobra
de improviso

Poesia íntima sem intimidades
Brisa fora do conceito
de tempo e tempestade



7 de março de 2020

DEUS ERA GIGANTE


Nei Duclós

Deus era gigante
Por isso criou a humanidade
À sua imagem e semelhança
A criatura se encarregou das montanhas
Tinha braços longos
E o mais fundo mar
Chegava à sua cintura
Ordenou as águas que desciam do topo
E fez selva e jardim
ao redor de rios lagos e cachoeiras

Mss tanto poder foi sua ruína
Hoje estão deitados em serranias
E rostos de pedra no alto
Voltados para as planícies

Foram substituídos
Por quem tinha menor estatura
Invenção de um Deus menino
Que brincava de deus no paraíso



TOMARA-QUE-CAIA


Nei Duclós


Esse vestido que usas por charme
E que chama a torcida que não se emenda
Todos querem teu consentimento
Que só a ti pertence, neste limite
Entre a roupa real e a nudez imaginada
Tomara que desça aos pés o que só ameaça
E teu escolhido te leve para o baile
Pois estás entre o êxtase e a valsa
Glória da criação, feminina sorte


AQUELA CRIANÇA


Nei Duclós


Se aquela criança soubesse que perderia um filho
Se aquela criança soubesse que seria pai
Não seria aquela criança
Mas eu sofrendo o futuro

Não pela inocência da dor
Da felicidade inventada depois da infância
Mas porque aquela criança é outra criatura
Que o pai não perdeu
Mesmo o colocando no meio do mato à noite
Sem se impressionar com o filho elogiado pela mãe
Ele não me perdeu por isso estou vivo
Mas não sou mais aquela criança
que não morreu
E nunca soube que um dia seria pai
E perderia um filho
 

O BARRO E AS PEDRAS



Nei Duclós

Mãe e filho morrem soterrados na inundação
Dois bombeiros tentam salvá-los e vão junto

Que tragédia meu pai
Quanto sofrimento
E que gesto desses heróis

Não os merecemos, bombeiros e vítimas
Porque perdemos o sentido e a força das palavras
Desperdiçamos em conflitos estéreis
O tempo que já não dispomos

Estamos mortos meus compatriotas
que sucumbiram no terror do descaso e da barbárie
Não como vocês, corações do martírio
Mas como as pedras que rolam esmagando vidas