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31 de março de 2018

SEM APELO


Nei Duclós

É missão no exercício do poema
Deixar que o amor comande, sem apelo
Suplante a certeza da vingança
E extinga a hegemonia do sistema

Mesmo que sua essência, a palavra
Desmoralize o esforço do conserto
E digam: tudo é inútil, mas não pega
Essa lei contrária ao universo

Como se o tempo, esse indiferente
Não encontrasse oposição e fosse adiante
Sem enfrentar o dom do sentimento
Efeito nobre da criação do cânone

Inventamos a bizarra sobrevivência
Ao redor de um improvável prêmio
Sem ter acesso ao poder que o absolve


ÁGUIAS


Nei Duclós

Tua poesia nada tem a ver contigo
És um modelo de Modigliani
Teu corpo é mudo

O que fala são as águias
Do teu coração em pânico


ARCABOUÇO


Nei Duclós

És feita de carne e osso
Mas o que gosto é esse novelo, esse arcabouço
dos pés à boca
A soma que me beija antes do almoço
e fala pelos cotovelos

É como um outro ser
liberado por tua dança
Que é o movimento
do passo antes da cama
Onde confluem as personas de ti mesma

Profusão de pele e de rendas


RESGATE URGENTE


Nei Duclós

Algo urgente, um gesto
que gere um reflexo
visto do alto por quem presta socorro

Achamos! dirá o piloto
e então teus olhos de náufrago
vão esperar que desçam em cordas resistentes
e serás levado em direção à nuvem
que estava tapando o sol


29 de março de 2018

NO LABIRINTO


Nei Duclós

Custamos a entender como funciona
a prisão que clona a liberdade
o direito de dar voltas na ilusão do alvo
E idolatrar um falso deus, o minotauro

Dele somos o repasto
Cheios de orgulho como bebuns aos trapos
Em púlpitos sobre sepulcros caiados

Mordemos a cauda fingindo ser revolta
Caímos na armadilha, pobres e exaustos
Estamos prontos para sumir do mapa


28 de março de 2018

PARA VIAGEM


Nei Duclós

Você emociona pelo que seleciono de ti? Esse rio amigável onde passamos a tarde como paisagem pintada por um pintor de Paris?

O que fazer quando tuas águas invisíveis apontam o abismo? O leito que guarda criaturas carnívoras? As margens desmatadas pelo sofrimento? As ilhas que não me acolhem? Terei de abandonar o que nos une e abraçar o medo que nos distancia?

Sentirei remorso por ter sido alheio ao que tinhas oculto aos meus olhos? Será o conjunto um defeito e a seleção a virtude?

Somos inviáveis como civilização. Não cabemos no mesmo espaço. Eu também escondo o pior pedaço. Não quero que ele encontre teu mar de sargaços.

Talvez a solução seja a arte que leve toda a nossa natureza para viagem.