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31 de dezembro de 2017

PERFIL EXATO



Nei Duclós

Te desconheço
Mas só agora que o sentir perdeu-se
Como a lua que desliza na sarjeta
depois da chuva
É que noto teu perfil exato
Sem o mel da palavra na mistura

Sempre foste assim, vestida de agonia
Que tentei consertar
Sem ter cacife

Porque sofro do mesmo mal, aceito
O que a vida impõe por destino
E a solidão vence apesar do sonho

Para não ser pessimista, insisto
Ainda és o que te faz extrema
Exímia na arte que chamei de amor
E era poesia


ESTIAGEM



Nei Duclós

Plantei no deserto
Não posso estranhar a falta de chuva
Nem esperar os frutos

Sou da areia porque a terra ficou seca
E a lavra é a lembrança de uma época
Nasci para a colheita quando faltou semente

Aguardo o comboio das perguntas
Que fazes aí? dirá a princesa
Meu amor dura mais do que a estiagem,
responderei. Aqui terei uma floresta

29 de dezembro de 2017

AS CIDADES



Nei Duclós

As cidades não existem
como aparecem nos mapas
Elas são feitas de ideias
que surgem à revelia

O que são mesmo de fato
trai o esboço das origens
São porções de alvenaria
na moldura dos casulos

Já morei em muitas ruas
cada qual cheia de histórias
Só ficou a cena escura
no assombro das cicatrizes

Hoje vejo quando falam
em perfis consolidados
uma prova da miragem
da urbana falcatrua

As cidades são pedaços
da vida jogada fora
O que fica é o bairro pobre
encantado com a lua


28 de dezembro de 2017

CORPO INVISÍVEL



Nei Duclós



Memórias são mortos que ocupam
espaços que já não existem
Penumbras em salas antigas
Presenças em corpo invisível

Lembramos pois nelas há vida
Em cenas inesquecíveis
E há sempre a ilusão proibida
de refazer o gesto perdido

Não contamos mais nossa história
de natureza inverossimel
Talvez seja mesmo mentira
Invenções da literatura

E tudo resiste contido
Na moldura de algo profundo
O mundo é o amor ao conflito
na alma, esse anjo caído


27 de dezembro de 2017

PASTOR



Nei Duclós

Contemplo a palavra, roça de reza
Cavo na terra o fruto ainda moço
Quem vê de longe não se sossega
Espera que eu saia do poder submerso

Nasci para o verbo, ação sem milagre
Dele não nasce a semente ou a erva
Limita-se ao corpo de invisível obra
Vislumbre de nuvem, tambor de compasso

Pastor de um rebanho que vive por conta
Remanso de água que aguarda na ponte
Sou servo da estrela, senhor de um espaço
Onde cumpre o poema seu esquema de caça


26 de dezembro de 2017

NOTURNO



Nei Duclós

Quisera ser noturno
Mas sinto fome de luz
A não ser que brilhe insone
Teu luar, que vem dos olhos