Páginas

26 de outubro de 2016

CAPITÃO



Nei Duclós

Enterramos o herói
com sua roupa favorita
a bandeira do Brasil
Quanto pesa essa camisa?

Só quem soube honrá-la
com um gol definitivo
entre o passe de um rei
e a rede do inimigo

Só quem veio do fundo
da nação em perigo
que lutava pela taça
com a revache dos vencidos

É que poderia liderar
em campo cheio de espinhos
a suprema sinfonia
da vitória inesquecível

O lugar comum da glória
mais que a pobre poesia
outorga ao povo escolhido
sua redenção mais legítima

Damos adeus em uníssono
ao capitão que se fina
desce ao chão hoje ferido
da Pátria como um aviso

Nao há crime que destrua
essa herança rediviva
o que morre ressuscita
o que é eterno ilumina


25 de outubro de 2016

OFÍCIO DE ATOR



Nei Duclós

Não temos tempo
para a vida ser completa
ensaiamos demais esta peça
que nunca estreia
porque nos perdemos
nos bastidores

O teatro fecha antes da hora
e fica o fedor dos corredores
falas improvisadas
que atormentam o ponto
roupas que jamais servem
goteiras no cenário

É tudo precário no drama nobre
a lama é o que deixamos
para trás como um traste
enquanto o brilho toma conta
por meio de candelabros
Longas escadarias idolatram

Usamos a cortina para manter
a linha, esconder vestígios
mascarar personagens
Lamentamos a perdida chance
do aplauso, mas o que vale
é o ofício do ator, metal pesado


RETORNO - Imagem desta edição: Al Pacino.

NENHUMA FANTASIA



Nei Duclós

Nenhuma fantasia substitui
o que és de fato, esse perfil
fruto do toque do cinzel
em pedra bruta

Essa formação de escura
geografia, perdida no tempo
imaturo, esse dia visto
pela vez primeira

Essa poesia de gestos
e carnificina, linhagem
de anzóis em correnteza
jugo em pânico da beleza

Por mais chapéus que ponhas
e mantos e brocados e cabelos
desfeitos ou arrumados
e pinturas, nunca terás nada além

do que tu mesmo, criatura
de um deus teimoso, vergonha
da família, carregador de piano
em concertos mudos

E verás as fotos do que eras
mas cavocando mais, no sacrifício
despontará tua dor eterna
de permanecer vivo


24 de outubro de 2016

ALMA GÊMEA

Nei Duclós
  
Amor é para sempre
A dor também
A flor vem da semente

Raiz contém o fruto
O barro atrai o orvalho
Do sol vem o perfume

O gesto faz silêncio
O sonho gera a sombra
A lágrima colhe o grão

Só a palavra se basta
Dispensa a alma gêmea
O poema é a solidão


RETORNO - Imagem desta edição: cena de filme de mestre Ozu

22 de outubro de 2016

ESTÁS PRONTO



Nei Duclós 

Estás pronto, disse o anjo
para a última viagem
Na barcaça de Caronte
com a moeda entre os dentes

Suba nos ombros da noite
armado só de coragem
Deus não fala, mas consente
o silêncio em sua guarda

Cruze por baixo da ponte
e ganhe o mar de Colombo
tuas ilhas no horizonte
cultivam a tempestade


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Jean Delville (1867-1953)