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30 de novembro de 2014

INTENSOS



Nei Duclós

Pouco ou quase nada nos falamos. Somos tão intensos que emudecemos.

Desenhei uma seta na alvenaria da tua ausência para orientar teu passo até o subúrbio onde mora meu coração.

Sobrou margem para o estrago depois de tanto fingimento. Sorte que tropecei na rua e caí sem querer sobre teu desejo.

A realidade te pôs de quarentena. Nada sou sem ti, amor ausente.

Chuva de poesia. Quando ela parar restarás úmida no chão.

Recitaste poemas com a voz suspirando a tensa relação. Era eu impregnando teus versos para te recolher no fim do show.

Queres que eu te busque no remoto lugar escolhido para me querer. Desço no fim da linha de coração na mão. Te reconheço entre as sombras, fugitiva.

Sou muito respeitoso. Quando te invado, me ajoelho.

Esperas que eu diga o que já calou fundo.

Limpei nossa conversa. Deixei o piso aberto para teu pé de valsa.

Brigar é uma espécie de namoro. Fazer as pazes parece abandono.

- Chega por hoje, disse ele.
- Acho bom, disse ela. Já estava ligando para o pronto socorro.

- Ninguém aprende comigo, só desaprende, disse o professor.
- É um alívio, disse a aluna. Assim temos tempo para inventar nossas lições.


JÓIAS ESPARSAS

Tudo é o mar
e o resto é o meu coração
avistando terra.
Tudo é sal
e o resto é o amor
pedindo água.


Dias passam como sal no peixe
preservam a carne condenada
esse amor que não teve começo
no infinito azul da maré alta


A brisa que dobra a relva
é igual à minha vontade
em voo de pássaro
sobre tua pele desperta


DELTA



Nei Duclós

Por que de domingo te batizo
dia como os outros, sol no aprisco
nuvem pastoreando o infinito
carruagem precoce do vento?

Será por tua herança bíblica
ou pelo calendário rítmico
todos ao redor do fogo, corpo
coletivo concêntrico, pira

que acende no amanhecer
e se despede quando enfim
encerra dezembro o ano findo
e tudo volta ao berço de vime?

Desliza o profeta ainda menino
a raposa escuta seu balido
os insetos perduram indecisos
no ar do gênesis, deus criança

O tempo desliga das raízes
a poesia retoma, verso livre
rima é a carranca de francisco
a moldura assume o conteúdo

Não há desfecho em rumo cíclico
voltamos ao rio, perfil da semana
o mecanismo do verbo recupera
o que se foi, delta em paraíso



28 de novembro de 2014

APARIÇÃO



Nei Duclós 

Não tenho conteúdo. Sou continente.
Contenho tudo, curvas e correntes
despenco em matagais e cordilheiras
sobrevoo o que jamais se apresenta

Não corte a lenha do que produzo,  
não acumule em lixos e estantes
broto miúdo, assomo ao ser gigante
curto a longa aparição dos astros

Colho amostras de uma flora funda
que medra em pânico na tormenta
parto sonoro em busca do confronto

Não te ofereço, apenas sou o mesmo
que se transforma em sólido presente
Tenho futuro, luz afiada no diamante


MANTO



Nei Duclós

Tudo ganhei da viagem, peregrina
Estes ossos, que sustentam a argila
Esta areia, que me mantém suspenso
Esta roupa, que reinventa o pouso

Tudo gastei na andança, prometida
Esta aliança, que extraí da Lua
esta força, vento sobre as dunas
este sopro, víbora na colheita

Tudo compus sem esboço, confidente
Este rosto, que ofereço límpido
esta boca, que adivinhou teu corpo
esta folha, com vocação de espinho

Tudo contém o máximo, esperança
Este dia, coração sem fôlego
esta noite, estrelas sem retorno
este preço, que pago com a vida



24 de novembro de 2014

ANJO DA GUARDA DO CINEMA



CARTA DE WAGNER CARELLI SOBRE MEU LIVRO

Meu querido amigo, escritor, editor, talento sem igual, criador, solidário, visionário Wagner Carelli escreve sobre meu livro TODO FILME É SOBRE CINEMA, que lancei pela coleção  Aldus, da Editora Unisinos.  A carta dele diz o seguinte:

“O livro é uma delícia 

1) pela abundância de temas do cinema e de modos de vê-lo; 

2) pelo tratamento narrativo, mais que crítico, desses temas, que obedece a todas as "Seis propostas para o próximo milênio" (este milênio, já), de Italo Calvino: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e a sexta, que ele não chegou a desenvolver, consistência (aliás, esses teus ensaios críticos estão para o ensaísmo como, por exemplo, "Cidades invisíveis" está para a ficção); 

3) pelas caixinhas de texto-jade, claras e brilhantes, todas do mesmo e preciso tamanho, todas igualmente lapidadas com paixão cuidadosa, em que vêm embalados os ensaios críticos, e 

4) pela fidelidade rigorosa, sempre observada, com que você se atém ao teu coração ao construir essas caixinhas, que não quer ver transformadas em bibelôs, mas nas respostas únicas que só podem dar o coração de cada um ao verter de um filme sobre ele.

"O que conta não é a posse sobre qualquer objeto que contenha a obra, a exibição de conhecimentos eruditos ou rasteiros, mas o resgate feito pela memória e pela criação. Um filme nos acompanha como um anjo da guarda e se transforma em algo completamente diverso do que vemos escrito sobre ele... Eu prefiro vê-lo do meu jeito." ("Hatari, a narrativa de cristal", não por acaso, como tuas peças, "narrativa"; não por acaso, "de cristal").

É uma fidelidade que se expressa de cara na epígrafe (*) tão bem escolhida, em si um presente a mais pra este presenteado com teu livro, que não a conhecia. Epígrafe que te guia como cada "anjo da guarda" a que assististes: você não tem vergonha alguma de dizer, de alguma forma, de cada um e de todos os filmes que te inspiram, que "é o mais lindo filme que eu já vi".

Teu leitor tem de ser coerente: "Todo filme é sobre cinema" é o mais lindo livro sobre cinema que eu já li.

Bacione, bagual véio, ninguém tem um coração como o teu.

Wagner  "     



RETORNO - (*) Dans l’histoire du cinéma, il y a cinq ou six films dont on aime à ne faire la critique que par ces seuls mots : « C’est le plus beau des films ! » Parce qu’il n’y a pas de plus bel éloge. (...)Comme l’étoile de mer qui s’ouvre et se ferme, ils savent offrir et cacher le secret d’un monde dont ils sont à la fois l’unique dépositaire et le fascinant reflet. La vérité est leur vérité. Ils la portent au plus profond d’eux-mêmes, et, cependant, l’écran se déchire à chaque plan pour la semer à tous vents. Dire d’eux c’est le plus beau des films, c’est tout dire. Pourquoi ? Parce que c’est comme ça. Et ce raisonnement enfantin, le cinéma seul peut se permettre de l’utiliser sans fausse honte. Pourquoi ? Parce qu’il est le cinéma. Et que le cinéma se suffit à lui-même.(Jean Luc-Godard – Bergmanorama – Cahièrs Du cinema).



(*) tradução: na história do cinema , há cinco ou seis filmes que gostamos de fazer a crítica com  apenas estas palavras: " Este é o mais belo dos filmes ! " Porque não há maior elogio. ( ... ) Como a estrela do mar que se abre e fecha ,  eles sabem como oferecer e esconder o segredo de um mundo em que eles são os única e fascinantes depositários de reflexão. A verdade é a sua verdade . Eles se carregam profundamente dentro deles mesmo, e ainda assim a tela rasga cada plano para semear ao vento. Dizer que são os mais belos filmes , diz tudo. Por quê? Porque é assim. E esse raciocínio infantil, só o cinema sozinho pode dar ao luxo de usá-lo sem sentir vergonha. Por quê? Porque é o cinema . E o cinema está contido em si próprio (Jean Luc Godard - Bergmanorama - Cahiers du cinema) ..