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30 de abril de 2014

LINGUAGEM CIFRADA



Nei Duclós

Cansei de dizer coisas. Agora direi nuvens.

Todo momento tem sua linguagem cifrada. Desate a trama interrompendo o sono do hábito.
        
Não nos enxergamos para podermos nos imaginar.

Não pegue ninguém pela palavra. Deixe solta a criação antes do verbo.

Te afastas para testar o sentimento. Mas ele pulsa, tormento.

Mel dá ressaca. O dia seguinte ainda tem pistas do estrago.

Não há nada sábado à noite. Apenas o mar em silêncio.

Inventei que era assim. E ficou por isso mesmo.

As palavras nos embalam enquanto passamos o tempo. Nos fazem companhia, como às janelas, o vento.


 TARDINHA

Tardinha é quando o dia descansa o rosto na palma da mão e olha para o infinito.

 Chuva miúda na ilha, quase noite. Nem os pássaros se agitam. Há um desmaiar do clima. O outono veste suas primeiras lãs.

Quando ela se foi, desaprendi de falar. Descobri que amor é a palavra.

Voltas sozinha para teu sonho íntimo. Lá te esperam coisas miúdas: uma janta, um sofá, um amor impossível.

Versos esparsos, como teus gestos. Às vezes te atinjo, esperança.

Te mandei uma mensagem urgente. Recebeste, sem responder. Teu coração cuidou do resto.
   
 Teu abraço por baixo da minha camisa. Só eu sinto, gloriosa feminina.
   
 Escrevo em teu vestido com letra imperceptível. Para leres depois, ao te despires. Levarás o verso ao rosto como se fosse perfume.

 Te entregas por pura teimosia. Mapeaste minhas passagem quando me viste voando. Me atrais, como a pomba, o alvo.
 
 Deitas como quem pousa em meu ombro. Fechas os olhos doces. Mulher que sonha, vibra sem que ninguém perceba. A não ser o amor, que te desmancha.
   
 Cultivo o encontro com todo o meu corpo. Basta chegar perto para a vontade encontrar seu porto.
   
 Já é hora de me dizeres aquilo que guardaste tanto tempo. Que gostas, flor que desabrocha.

   
ELA, ELE

- Faça como quiser, disse ela.
- Você manda em mim, mas não pode comigo, disse ele.

- Quando falei que te amo estava mentindo, disse ela.
- Que bom, disse ele. Se tivesses dito a verdade eu não acreditaria.

- Prefiro tuas fotos antigas, disse ela.
- Nasci 30 anos antes, disse ele.


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Themistokles_von_Eckenbrecher.


SALVAS MEU DIA



Nei Duclós

Salvas meu dia com tua voz de quintal antigo,
daqueles que parecem sujos porque estão vivos.
Canteiros pelos cantos, ervas, madressilvas,  
flores desconhecidas. Uma cerca meio caída,
 exausta  de pensar no inverno que se aproxima.

Tens a cantoria dos pássaros da figueira
esparramada pela rua, onde crianças brincam.
No céu passa um avião para torres longínquas .
És um disco arranhado na mesma melodia,
a do sonho a dois entre esporo e clorofila.

És a natureza que canta em meu ouvido, a criatura
que me inventou junto ao amor que nunca existira.
Inauguras a manhã, raio que cruza o ar como um sino.
Moras em mim com tua rede sonora de especiarias.


26 de abril de 2014

O PISO SEM FUNDO DA PALAVRA



Nei Duclós
sobre o livro de poemas OUT SIDE, 
de Mario Bakuna (foto).


É feito de feixes foscos e luminosos o piso complicado da palavra a qual temos acesso de todas as formas. Dá vontade de andar nele como se palmilha uma estrada, mas isso seria afundar no cabelo da Medusa. Há muito ouriço riscando serpentes e exercícios de raízes que chegam à tons para providenciar uma busca de céu.

A poesia de Mario Bakuna pode ser identificada no meio desse emaranhado em que nos confundimos. Ela se destaca não pela pose de originalidade ou a vontade de impactar, já que existe a consciência da inutilidade desse gesto na maré alta do apocalipse. Estamos condenados e nos resta gerar o impossível momento do encantamento sem abrir mão da herança mais densa, a lucidez, essa neblina com vocação de faísca..

O livro de Mario Bakuna nos conquista por navegar em versos que se contorcem de tanta individualidade. Mas só percebemos sua força no mergulho da leitura, superficialidade aparente que oculta a máscara da danação pelo escuro. De repente, em meio à busca da palavra inexata mas concisa e traiçoeira, ele nos diz a que veio:

“Quando eu tenho algo a dizer
me calo para não sufocar a paisagem.
É tão difícil suportar calado as intermitências entre um verso e outro
que eu prefiro apaziguar minha vontade deixando que o silêncio faça a sua música.
Esvaziar esse balão de retrospectivas
para que não exista nenhuma catarse.
A poesia é um abismo
não um espelho.”


Pronto, estamos cooptados por uma poesia que não oferecia nada e que salta na paisagem como o percurso ao inverso de uma estrela cadente. Vem do fundo e alcança o precipício que se espraia acima do nosso olhar:

“O lugar que você existe em mim
eu só alcanço se fechar os olhos. “

ou

“Quando a carne sofre é amor
Um homem só é jovem quando está apaixonado!”

É uma temeridade selecionar poemas ou versos num trabalho encadeado e surdamente musical, feito com o rigor de um saltimbanco certo de que irá conseguir a próxima refeição. Seu alvo é nossa indiferença: estamos treinados para não ver, mas Mario Bakuna se insurge. Não quer a submissão do leitor tradicional ou o artificialismo do falso leitor/autor, que em tese participaria da obra. O paradoxo é que admitimos o poeta sem sermos convidados à passividade e invadimos sua palavra respeitando as balizas interpostas num caminho ouriçado de má conduta e de uma ética que só a transgressão experimenta. A transgressão de perder a forma para encontrar o núcleo do drama.

Perdemos ao ler esta poesia que não tinha nada para acontecer e se revela absurdamente perfeita. De uma perfeição de piso que se mexe como bailarina em abismo sem rede de segurança. Não um piso de mármore, necrópole do poema. Mas um chão que no fundo é nuvem, um movimento que nos leva à necessária contemplação, uma dor que gera felicidade pelo que traz de revelação.

Perder-se, aqui, é encontrar um coração habitado, um autor que se entrega ao verbo com a gana dos amantes em êxtase. Não se trata de gozo, mas de literatura, essa palavra que o mundo tenta enquadrar porque sente medo.  



EM SEGREDO



Nei Duclós

Selecionei um trecho da tua imagem. Aquele em que te entregas em segredo.

Eu ia dormir, mas pensaste em mim. Não resisto a um chamado em voz alta.
   
Queres dar um tempo? Me passe alguns anos.

Como sou gigante, me tornei exilado da doçura. Então surgiste, flor de seda pura.

Agora sim, durmo contente. Fiz versos para povoar teu sonho.

 Como na tua mão, fada de outro mundo. Sou tua criação, ser errante.

Crio a esmo. Trigo com ervas do campo. Depois não colho, porque cansa muito.

O tempo nos reserva uma surpresa. Viajamos sós e nos reconhecemos no convés, depois de um cinema.

Você é tão adorável, estrela cadente.

Não sei o que estou pensando. Não costumo olhar o rastro do meu barco a remo.

Tens aquela postura de ter desistido. Mas te empinas para a frente, perfil de seios. Assim te entregas quando recitas o poema.

Não tenho profundidade, tenho cataventos.

Quando me conheceste, eu era outro. Agora que és outra, descubro que sou aquele.

Sou feito de abandonos. São tantos, espalhados por toda parte, que fácil me encontras.

Para não esquecer, me beije. A memória mora nessas besteiras.

Faça outra coisa. Que eu farei o mesmo.

Vou te mostrar minha coleção de borboletas. Só que todas voaram.

Todas as fotos são antigas. Somos um álbum de retratos.

Digo coisas sem sentido porque assim me sintonizo com vibrações fora do circuito.

Se és amor, levante a mão. Eu aponto em meu caderno de esperanças.

Nossa palavra é limitada pelo que somos fisicamente. Para extrapolar é preciso jejuar e só depois de 40 dias comer alfinetes.

Não somos objetos. Somos sujeitos ao desejo.

Mas vai piorar. Agora vou aparecer gigante sobre a cidade, como Godzilla cuspindo fogo. Saia do cinema correndo.

Também não gostei quando alguém me apresentou dizendo meu nome para mim mesmo. Achei over.

Perdeu a graça quando me viste. Faltava o rosto imaginado. Deste as costas e eu lá estava, imagem configurada pelo teu espelho.

É uma pena seres minha amiga. Poderíamos exercer o vale tudo da luta livre.

Vão rir de ti, não revide. Há mais graça na planta que imaginas florir do que na falsa armadura da razão e seus convites

Manténs distância lendo poesia. É um truque do teu não, lisinha.

Se perguntarem quem és, diga: solidão. Não vão acreditar, estrela do mar.


Fui rei para te fazer a vontade. Depois abdiquei, quando viraste voluntária na colheita do trigo.

Venci a guerra mas não ocupei o trono. Fiquei contigo, desvio de um exército.

Diga ai que eu fico. Não resisto ao teu capricho.

Lembre da beleza quando eu for embora.Peguei emprestado de tuas asas.

Aguardas, soberana, que eu me desperdice. Depois me acolhe, aos pedaços, em suas asas de espuma.

Meu poema reza no crepúsculo.

- Sou muito perigoso, disse ele.
- Morres de medo de ti mesmo? disse ela.

SEM SOSSEGO



Nei Duclós

Moras no mar, único jeito
de equilibrar teu incêndio
vento na saia e nos cabelos
brasas borrifadas pelo sal

Queimei a boca no poema
achei que era fácil escrever
jogas pesado, erro e acerto
vens sem me dar socorro

Não corro, fogo de outono
reservo o fôlego no instante
em que somas tempo louco

Corpo de fora, pele vermelha
desperdício de amor errante
coração no final do sossego


RETORNO -  Imagem desta edição: Mônica Vitti.