Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
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18 de dezembro de 2002
A verdadeira decadência
A verdadeira decadência
Nei Duclós
(e-mail: nei@consciencia.org)
(Site: www.consciencia.org/neiduclos)
O pentacampeonato provou que a crônica esportiva brasileira está em decadência. Não acompanha mais o passo dos acontecimentos e acaba sendo atropelado por eles. Não acompanha porque abriu mão, como de resto a maior parte do jornalismo brasileiro, da função principal da profissão: perguntar, para poder entender e veicular corretamente. Ao contrário, os jornalistas ditos especializados caíram na tentação de assumir as funções do técnico, sem ter a menor preocupação em entender o que ele estava falando.
A necessidade que Scolari tem de escrever um livro sobre a Copa revela que nenhum jornalista conseguiu entender a participação brasileira, exatamente por falta de ouvidos e olhos.
Não vi ninguém, por exemplo, perguntar a sério porque ele considera Juninho um atleta fundamental das primeiras vitórias do Brasil na Copa. Também Scolari não foi levado a sério quando justificou o chamado "buraco" no meio do campo porque priorizou o papel da defesa. Como todos são técnicos, ninguém quis descer do pedestal para simplesmente perguntar.
Quando Scolari convocou Kleberson e Gilberto Silva, vozes levantaram-se em uníssina revolta, como se ele tivesse cometido um crime. Quando insistiu numa zaga reforçada (onde Roque Júnior, que detonou na final, era apontado como desastre certo), ninguém apostou que ele armaria um time ofensivo. Scolari contrariou a todos porque não foi escutado, ninguém fez questão de entender. A crônica esportiva dividiu-se então, entre os que criticaram sempre - ou seja, não mudaram nunca, assumindo assim o papel que tinham imputado ao treinador, o de teimoso; e os que fizeram "autocrítica" e passaram a endeusá-lo, para pegar carona na vitória. Nenhum dos dois lados dignou-se a procurar entender as razões do técnico.
Ao contrário, muitos tiveram a ousadia de arrogar-se orientadores do treinador, dizendo que ele acabou fazendo o que os críticos apontavam. Não é verdade. Basta um exemplo: quando, pressionado pelas circunstâncias, Scolari convocou Ricardinho, houve uma tempestade de "eu não disse?" na imprensa, como se o treinador estivesse enfim se rendendo aos "fatos" (todos sabem que fato é a opinião do jornalista; o resto é mentira). Ricardinho ficou no banco e o time se acertou com o improvável Kleberson.
Scolari provou que sabe atuar dialeticamente. Ele mudou ao longo do processo porque reconhece que um time de futebol não existe "por si", como se fosse uma entidade imutável, amparado pela tradição e a convocação sem reparos. Scolari, que antes de ser campeão, foi duas vezes campeão das Américas e ganhou todos os campeonatos importantes do Brasil - estaduais e federais, tendo sido autor de um título para o obscuro Criciúma, o da Copa do Brasil - provou que um time existe em função dos adversários. Dou um exemplo da diferença de percepção entre nosso treinador pentacampeão e seus pseudo-algozes.
Ouvi impropérios contra a seleção e loas para aquele timinho do Beckham antes de os brasileiros despacharem os súditos da rainha para o aconchego das suas respectivas esposas (deixando órfão um coro de japonesas encalhadas). Depois do jogo, justificavam-se dizendo que a Inglaterra não tinha jogado a mesma coisa do que jogara contra a Argentina. Pudera! A Argentina era um time mais fraco, é claro que contra los hermanitos (sempre tão arrogantes sem nenhuma base para tanto) a Inglaterra sobrepôs-se, foi superior. Contra uma seleção melhor, a do Brasil, ficou no seu lugar de adversário batido. A dialética de Scolari - que ganhou campeonatos inteiros nos últimos dez minutos dos jogos decisivos, colocando matadores descansados e velozes como Euller ou incentivando a subida aos céus de São Marcos - é a melhor notícia do esporte mundial e a crônica esportiva brasileira passou em branco.
Isso aconteceu porque o jornalismo brasileiro é arrogante e acha que pode tomar o lugar das fontes. Porque não se coloca no seu lugar, o de mídia, meio. Porque não assume sua função, que é perguntar (já que o jornalista é aquele que nada sabe, por isso vive perguntando). Mas como são todos os reis da cocada preta, levaram um tufo por trás do tamanho do mundo.
Com copa pintada de verde amarelo e tudo. Como gritou Scolari depois do jogo contra os imbatíveis ingleses, sacudindo alternadamente os braços: Vão-se- fudê! Vão-se-fudê! Vão-se-fudê.
Nei Duclós
(e-mail: nei@consciencia.org)
(Site: www.consciencia.org/neiduclos)
O pentacampeonato provou que a crônica esportiva brasileira está em decadência. Não acompanha mais o passo dos acontecimentos e acaba sendo atropelado por eles. Não acompanha porque abriu mão, como de resto a maior parte do jornalismo brasileiro, da função principal da profissão: perguntar, para poder entender e veicular corretamente. Ao contrário, os jornalistas ditos especializados caíram na tentação de assumir as funções do técnico, sem ter a menor preocupação em entender o que ele estava falando.
A necessidade que Scolari tem de escrever um livro sobre a Copa revela que nenhum jornalista conseguiu entender a participação brasileira, exatamente por falta de ouvidos e olhos.
Não vi ninguém, por exemplo, perguntar a sério porque ele considera Juninho um atleta fundamental das primeiras vitórias do Brasil na Copa. Também Scolari não foi levado a sério quando justificou o chamado "buraco" no meio do campo porque priorizou o papel da defesa. Como todos são técnicos, ninguém quis descer do pedestal para simplesmente perguntar.
Quando Scolari convocou Kleberson e Gilberto Silva, vozes levantaram-se em uníssina revolta, como se ele tivesse cometido um crime. Quando insistiu numa zaga reforçada (onde Roque Júnior, que detonou na final, era apontado como desastre certo), ninguém apostou que ele armaria um time ofensivo. Scolari contrariou a todos porque não foi escutado, ninguém fez questão de entender. A crônica esportiva dividiu-se então, entre os que criticaram sempre - ou seja, não mudaram nunca, assumindo assim o papel que tinham imputado ao treinador, o de teimoso; e os que fizeram "autocrítica" e passaram a endeusá-lo, para pegar carona na vitória. Nenhum dos dois lados dignou-se a procurar entender as razões do técnico.
Ao contrário, muitos tiveram a ousadia de arrogar-se orientadores do treinador, dizendo que ele acabou fazendo o que os críticos apontavam. Não é verdade. Basta um exemplo: quando, pressionado pelas circunstâncias, Scolari convocou Ricardinho, houve uma tempestade de "eu não disse?" na imprensa, como se o treinador estivesse enfim se rendendo aos "fatos" (todos sabem que fato é a opinião do jornalista; o resto é mentira). Ricardinho ficou no banco e o time se acertou com o improvável Kleberson.
Scolari provou que sabe atuar dialeticamente. Ele mudou ao longo do processo porque reconhece que um time de futebol não existe "por si", como se fosse uma entidade imutável, amparado pela tradição e a convocação sem reparos. Scolari, que antes de ser campeão, foi duas vezes campeão das Américas e ganhou todos os campeonatos importantes do Brasil - estaduais e federais, tendo sido autor de um título para o obscuro Criciúma, o da Copa do Brasil - provou que um time existe em função dos adversários. Dou um exemplo da diferença de percepção entre nosso treinador pentacampeão e seus pseudo-algozes.
Ouvi impropérios contra a seleção e loas para aquele timinho do Beckham antes de os brasileiros despacharem os súditos da rainha para o aconchego das suas respectivas esposas (deixando órfão um coro de japonesas encalhadas). Depois do jogo, justificavam-se dizendo que a Inglaterra não tinha jogado a mesma coisa do que jogara contra a Argentina. Pudera! A Argentina era um time mais fraco, é claro que contra los hermanitos (sempre tão arrogantes sem nenhuma base para tanto) a Inglaterra sobrepôs-se, foi superior. Contra uma seleção melhor, a do Brasil, ficou no seu lugar de adversário batido. A dialética de Scolari - que ganhou campeonatos inteiros nos últimos dez minutos dos jogos decisivos, colocando matadores descansados e velozes como Euller ou incentivando a subida aos céus de São Marcos - é a melhor notícia do esporte mundial e a crônica esportiva brasileira passou em branco.
Isso aconteceu porque o jornalismo brasileiro é arrogante e acha que pode tomar o lugar das fontes. Porque não se coloca no seu lugar, o de mídia, meio. Porque não assume sua função, que é perguntar (já que o jornalista é aquele que nada sabe, por isso vive perguntando). Mas como são todos os reis da cocada preta, levaram um tufo por trás do tamanho do mundo.
Com copa pintada de verde amarelo e tudo. Como gritou Scolari depois do jogo contra os imbatíveis ingleses, sacudindo alternadamente os braços: Vão-se- fudê! Vão-se-fudê! Vão-se-fudê.
7 de dezembro de 2002
BRAÇO DE MAR
BRAÇO DE MAR
Nei Duclós
O mar é sempre maior
e o luar lhe faz a corte
Não há medida do homem
entre a praia e o horizonte
O mar já veio antes
da onda inventar o tempo
É ele quem trai o porto
e acende o pavio da bomba
que puxa a noite do poço
e corta os pulsos da sombra
E mesmo no sol, o mar transa
seu jogo de conveniências
suas algas postas de molho
sua escultura sem cabeça
O mar é sempre o começo
(Do livro "No Mar, Veremos", Ed. Globo, 2001)
Nei Duclós
O mar é sempre maior
e o luar lhe faz a corte
Não há medida do homem
entre a praia e o horizonte
O mar já veio antes
da onda inventar o tempo
É ele quem trai o porto
e acende o pavio da bomba
que puxa a noite do poço
e corta os pulsos da sombra
E mesmo no sol, o mar transa
seu jogo de conveniências
suas algas postas de molho
sua escultura sem cabeça
O mar é sempre o começo
(Do livro "No Mar, Veremos", Ed. Globo, 2001)
BRAÇO DE MAR
Nei Duclós
O mar é sempre maior
e o luar lhe faz a corte
Não há medida do homem
entra a praia e o horizonte
O mar já veio antes
da onda inventar o tempo
É ele quem trai o porto
e acende o pavio da bomba
que puxa a noite do poço
e corta os pulsos da sombra
E mesmo no sol, o mar transa
seu jogo de conveniências
suas algas postas de molho
sua escultura sem cabeça
O mar é sempre o começo
(Do livro " No Mar, Veremos", Ed. Globo, 2001)
O mar é sempre maior
e o luar lhe faz a corte
Não há medida do homem
entra a praia e o horizonte
O mar já veio antes
da onda inventar o tempo
É ele quem trai o porto
e acende o pavio da bomba
que puxa a noite do poço
e corta os pulsos da sombra
E mesmo no sol, o mar transa
seu jogo de conveniências
suas algas postas de molho
sua escultura sem cabeça
O mar é sempre o começo
(Do livro " No Mar, Veremos", Ed. Globo, 2001)
5 de dezembro de 2002
NO ACAMPAMENTO
NO ACAMPAMENTO
Nei Duclós
Meu pai acende a fogueira
e prepara a cama
debaixo das estrelas
A madrugada é intensa
do céu pinga o sereno
O rio murmura a surda
espera do espinhel
Ele sopra as brasas
e dorme ao som dos pássaros
noturnos
Acorda com um pressentimento
alguma coisa mergulhou
Alguém engatilhou um túnel
O que tem forma
só com o vento
roçou no anzol
como um aviso
Meu pai levanta
e sacode o mato às cinco e trinta
Um peixe imenso
espera a sua hora
no centro da aventura
Nei Duclós
Meu pai acende a fogueira
e prepara a cama
debaixo das estrelas
A madrugada é intensa
do céu pinga o sereno
O rio murmura a surda
espera do espinhel
Ele sopra as brasas
e dorme ao som dos pássaros
noturnos
Acorda com um pressentimento
alguma coisa mergulhou
Alguém engatilhou um túnel
O que tem forma
só com o vento
roçou no anzol
como um aviso
Meu pai levanta
e sacode o mato às cinco e trinta
Um peixe imenso
espera a sua hora
no centro da aventura
4 de dezembro de 2002
ESQUINA
ESQUINA
Nei Duclós
Procuro alguma coisa bela
na rua que perdeu a alma
a lua, alguma coisa nova
Procuro alguma coisa séria
a prova de que estou na terra
a estrela que não for loucura
Procuro alimentar os olhos
com a luz que brota na calçada
na curva de uma esquina clara
Procuro aquilo que me espera
o corpo que recusa o escuro
a mão que enfim me desamarra
De "No Mar, Veremos" (Ed. Globo, 2001)
Nei Duclós
Procuro alguma coisa bela
na rua que perdeu a alma
a lua, alguma coisa nova
Procuro alguma coisa séria
a prova de que estou na terra
a estrela que não for loucura
Procuro alimentar os olhos
com a luz que brota na calçada
na curva de uma esquina clara
Procuro aquilo que me espera
o corpo que recusa o escuro
a mão que enfim me desamarra
De "No Mar, Veremos" (Ed. Globo, 2001)
29 de novembro de 2002
IDADE DA PÓLVORA
IDADE DA PÓLVORA
Nei Duclós
Tudo cabe
no paiol de imagens
o mágico, a lógica
a linguagem na flor
da idade
Nada cabe nesta sala
nosso amor, nossa fábrica
Para viver
precisa baixar o vale
como os rios sem nome
e a fome das águias
A solidão é de quem
ataca. a tocaia na mão
com um tacape
A escuridão é teu passo
possível autor
da claridade
Nei Duclós
Tudo cabe
no paiol de imagens
o mágico, a lógica
a linguagem na flor
da idade
Nada cabe nesta sala
nosso amor, nossa fábrica
Para viver
precisa baixar o vale
como os rios sem nome
e a fome das águias
A solidão é de quem
ataca. a tocaia na mão
com um tacape
A escuridão é teu passo
possível autor
da claridade
5 de outubro de 2002
MITOS DE ORIGEM
MITOS DE ORIGEM
O Brasil cospe nos seus mitos de origem e paga o preço da auto-eliminação da soberania.
Nei Duclós
Ao deixar de lado a Descoberta, fruto do acaso, e escolher o Achamento, fruto da má-intenção colonial, a cultura do país-pago-para-perder insuflou o Mal no próprio berço, como se o Gênesis fosse sub-produto da Queda. O Acaso reforçava a visão do Paraíso europeu, da Terra sem Males indígena. Um país fadado à felicidade foi substituído por uma nação ungida, na concepção, para a escravatura.
Ao colocar o 13 de Maio como manobra mesquinha da elite colonial para manter o escravo à margem da nacionalidade, negou-se o que havia de melhor na data: a radicalidade do gesto do Império, que lhe custou a vida. O 13 de Maio jamais poderá ser visto como uma data perfeita, mas deveria ser cultuado como mais um mito de origem - impulso inicial para uma nação de pessoas enfim iguais , que iria inspirar a criação futura da cidadania
Quando se encara a Proclamação da República como apenas um golpe militar, nega-se a instauração de uma nova ordem política que aponta para a modernidade. Golpe militar tem a imagem do retrocesso e o movimento republicano, que culminou no 15 de novembro não pode ser visto como um passo atrás. Com a "denúncia" que enlameou a data, nega-se ao Exército o seu maior mérito, o de ficar ligado eternamente a um regime de representação política por meio do voto.
Ao colocar a Revolução de 30 como uma revolução burguesa, nega-se o caráter autóctene do movimento e seu grande divisor de águas, que praticamente fundou o Brasil moderno e implantou a noção de soberania. Nega-se também o caráter sangrento da revolução (como se fosse um mero acordo entre elites, sem nenhum custo em vidas e sangue), o que é um escárnio com a História e uma pá de cal no necessário heroismo do fundadores de uma nova ordem política e social.
Todas essas negações foram acompanhadas pela mistificação do movimento Diretas Já, que, traído pelos que negam nossos mitos de origem (sob pretexto da conscientização das massas) acabou desaguando na consolidação do regime de 1964. A ditadura travestiu-se de democracia e foram resgatados os vícios da República Velha, destacando-se o voto de cabresto (via corrupção eleitoral) e a internacionalização das empresas que cuidam da infra-estrutura do País.
A chamada Nova República, desmoralizada junto com o fracasso do Plano Cruzado e enterrada logo no segundo governo, o de Fernando Collor, tirou definitivamente a máscara quando FHC escancarou o país ao saque estrangeiro em troca de alguns títulos Honoris Causa em unversidades européias. Vê-lo de mitra com cara de sabão é um pesadelo recorrente no país que mergulha fundo na violência , resultado da negação da soberania, da destruição da auto-estima e do sucateamento dos empregos.
O Brasil cospe nos seus mitos de origem e paga o preço da auto-eliminação da soberania.
Nei Duclós
Ao deixar de lado a Descoberta, fruto do acaso, e escolher o Achamento, fruto da má-intenção colonial, a cultura do país-pago-para-perder insuflou o Mal no próprio berço, como se o Gênesis fosse sub-produto da Queda. O Acaso reforçava a visão do Paraíso europeu, da Terra sem Males indígena. Um país fadado à felicidade foi substituído por uma nação ungida, na concepção, para a escravatura.
Ao colocar o 13 de Maio como manobra mesquinha da elite colonial para manter o escravo à margem da nacionalidade, negou-se o que havia de melhor na data: a radicalidade do gesto do Império, que lhe custou a vida. O 13 de Maio jamais poderá ser visto como uma data perfeita, mas deveria ser cultuado como mais um mito de origem - impulso inicial para uma nação de pessoas enfim iguais , que iria inspirar a criação futura da cidadania
Quando se encara a Proclamação da República como apenas um golpe militar, nega-se a instauração de uma nova ordem política que aponta para a modernidade. Golpe militar tem a imagem do retrocesso e o movimento republicano, que culminou no 15 de novembro não pode ser visto como um passo atrás. Com a "denúncia" que enlameou a data, nega-se ao Exército o seu maior mérito, o de ficar ligado eternamente a um regime de representação política por meio do voto.
Ao colocar a Revolução de 30 como uma revolução burguesa, nega-se o caráter autóctene do movimento e seu grande divisor de águas, que praticamente fundou o Brasil moderno e implantou a noção de soberania. Nega-se também o caráter sangrento da revolução (como se fosse um mero acordo entre elites, sem nenhum custo em vidas e sangue), o que é um escárnio com a História e uma pá de cal no necessário heroismo do fundadores de uma nova ordem política e social.
Todas essas negações foram acompanhadas pela mistificação do movimento Diretas Já, que, traído pelos que negam nossos mitos de origem (sob pretexto da conscientização das massas) acabou desaguando na consolidação do regime de 1964. A ditadura travestiu-se de democracia e foram resgatados os vícios da República Velha, destacando-se o voto de cabresto (via corrupção eleitoral) e a internacionalização das empresas que cuidam da infra-estrutura do País.
A chamada Nova República, desmoralizada junto com o fracasso do Plano Cruzado e enterrada logo no segundo governo, o de Fernando Collor, tirou definitivamente a máscara quando FHC escancarou o país ao saque estrangeiro em troca de alguns títulos Honoris Causa em unversidades européias. Vê-lo de mitra com cara de sabão é um pesadelo recorrente no país que mergulha fundo na violência , resultado da negação da soberania, da destruição da auto-estima e do sucateamento dos empregos.
4 de outubro de 2002
PAISAGEM PELO TELEFONE
O telefone toca e Mestre João Cabral atende. A poesia, então, desce sobre nós como um anjo.
PAISAGEM PELO TELEFONE
João Cabral de Melo Neto
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.
PAISAGEM PELO TELEFONE
João Cabral de Melo Neto
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.
3 de outubro de 2002
Ne Me Quite Pas
Uma obra-prima, para afastar o adeus e reinaugurar o abraço:
Ne Me Quite Pas
Jacques Brel
Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit déjà
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le coeur du bonheure
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Moi je t'offrirai
Des perles de pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas
Je creuserai la terre
Jusqu'après ma mort
Pour couvrir ton corps
D'or et de lumière
Je ferai un domaine
Où l'amour sera roi
Où l'amour sera loi
Où tu seras reine
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je t'inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants-là
Qui ont vue deux fois
Leurs coeurs s'embraser
Je te raconterai
L'histoire de ce roi
Mort de n'avoir pas
Pu te rencontrer
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
On a vu souvent
Rejaillir le feu
De l'ancien volcan
Qu'on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu'un meilleur avril
Et quand vient le soir
Pour qu'un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s'épousent-ils pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler
Je me cacherai là
A te regarder
Danser et sourire
Et à t'écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne Me Quite Pas
Jacques Brel
Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit déjà
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le coeur du bonheure
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Moi je t'offrirai
Des perles de pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas
Je creuserai la terre
Jusqu'après ma mort
Pour couvrir ton corps
D'or et de lumière
Je ferai un domaine
Où l'amour sera roi
Où l'amour sera loi
Où tu seras reine
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je t'inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants-là
Qui ont vue deux fois
Leurs coeurs s'embraser
Je te raconterai
L'histoire de ce roi
Mort de n'avoir pas
Pu te rencontrer
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
On a vu souvent
Rejaillir le feu
De l'ancien volcan
Qu'on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu'un meilleur avril
Et quand vient le soir
Pour qu'un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s'épousent-ils pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler
Je me cacherai là
A te regarder
Danser et sourire
Et à t'écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
2 de outubro de 2002
OUTUBRO
OUTUBRO
Nei Duclós
Trago a nova: eu mudo
lento, e é tudo
Sinto ser assim
por estações: aos turnos
Posso voltar
ao ponto de partida
mas luto
Sei que vem outubro
Flores, fruto de seiva
romperão no mundo
(Trabalho duro:
sugar de pedras
rasgar os caules
colher ar puro)
Lento e bruto
eu mudo
Sei que vem
outubro
Nei Duclós
Trago a nova: eu mudo
lento, e é tudo
Sinto ser assim
por estações: aos turnos
Posso voltar
ao ponto de partida
mas luto
Sei que vem outubro
Flores, fruto de seiva
romperão no mundo
(Trabalho duro:
sugar de pedras
rasgar os caules
colher ar puro)
Lento e bruto
eu mudo
Sei que vem
outubro
1 de outubro de 2002
EXPEDIÇÃO
Nei Duclós
Nas montanhas geladas procurei o anjo enterrado do poema
Encontrei estátuas de carne ainda intactas de antigos navegantes
Encontrei-os de boné ainda postos, de olhos sedentos
e o rosto calmo como a bater ponto numa indústria impossível
instalada no alto da avalanche antes da queda
A nuvem daquela paz que o vento tinha colocado na minha busca
me fez esquecer o que procurava. O poema no fim ficava abaixo
de qualquer achado e eu tinha que me contentar com a espera
de navios enviados ainda antes do inverno para me salvar.
Lá fiquei até que os corpos rolaram direto para meu ponto de partida
Nas montanhas geladas procurei o anjo enterrado do poema
Encontrei estátuas de carne ainda intactas de antigos navegantes
Encontrei-os de boné ainda postos, de olhos sedentos
e o rosto calmo como a bater ponto numa indústria impossível
instalada no alto da avalanche antes da queda
A nuvem daquela paz que o vento tinha colocado na minha busca
me fez esquecer o que procurava. O poema no fim ficava abaixo
de qualquer achado e eu tinha que me contentar com a espera
de navios enviados ainda antes do inverno para me salvar.
Lá fiquei até que os corpos rolaram direto para meu ponto de partida
28 de setembro de 2002
SOBRA DE GUERRA, de José Onofre (L&PM, 1982)
SOBRA DE GUERRA, de José Onofre (L&PM, 1982)
Nei Duclós
Fiz uma visita à Bienal do Livro, em São Paulo, para não me arrepender depois. Foi pior: me arrependi durante. Entrei junto com cem mil crianças uniformizadas. Tinha palhaço, pipoca, cafezinho, pizza e, soterrando alguns lançamentos excelentes, muitos livros sobre nada, ostentados por autores capazes de tudo. Fui caçado pelos espalhadores de folhetos nos corredores cheios, umbrais que cercavam estandes de todos os tipos, a maioria vazios nas três horas em que fiquei lá (entre meio dia e três da tarde de uma quinta feira). Mas tive a sorte de esbarrar num baú de livros em promoção, uma caixa cheia da L&PM, que, entre muitos títulos, continha um exemplar da segunda edição de Sobra de Guerra, de José Onofre.
José Onofre está bem servido de fortuna crítica, porque a apresentação do livro é feita por Luis Fernando Veríssimo, seu leitor de longa data. Quem tem um fã de carteirinha como Veríssimo pode aposentar-se sem ter publicado uma única linha - o que não é o caso de José Onofre, jornalista de larga e profunda militância cultural, autor de textos primorosos sobre a melhor literatura e, como prova este livro, um escritor como poucos. Neste vôo literário enxuto e demolidor de Sobra de Guerra, ele entreabre um baú que o tempo - codinome da omissão - pensou ter fechado para sempre.
O que vemos é muito mais do que o corte afiado de suas frases. Mas algumas podem ser destacadas, por ordem de aparição, como nos filmes, para servir de vitrine do que estamos falando:
?A História é o romance das decisões raras.
Você é um cão de caça jogado ainda vivo e jovem num freezer.
Apenas o gesto exato põe em movimento a roda da fortuna.
A máfia entrou na literatura e a literatura entrou no crime.
O que o pais precisa é bom senso e boca fechada.
Dá o fora antes que eu esqueça que sou um humanista.?
Onofre explora a superficialidade da tampa para sugerir a profundidade do poço. O diálogo escasso e alguns perfis ariscos dos personagens narram um crime que parece passional e pode ser político; o sufoco de um apartamento ensanguentado, a redação de jornal rondando a úlcera, uma delegacia com fantasmas no armário são flashes de ambientes que não merecem mais do que um ou dois parágrafos. Sinal de que Onofre não perde tempo para dizer a que veio - já que pressupõe o leitor como um cúmplice, a quem não se deve muitas explicações., afora o essencial - ou seja, os detalhes.
O país que emerge dessa usura narrativa é o mesmo revelado em qualquer mesa de bar, quando se fala pouco para a conversa não desviar a atenção do copo. A contenção leva o leitor a uma paisagem de primeiros planos, quando é possível reconhecer a máscara de cada um. O tiro desferido poupa o espelho quando podemos reconhecer, pelo reflexo da sobra, a essência da guerra. Vemos então um território que o romance policial clássico - e estrangeiro - costuma catar no lixo. Se cavarmos qualquer história de detetive escrita em inglês encontraremos o Brasil naquilo que os personagens adoram pisar, e que aqui costumamos comer. Aparentemente, fica simples escrever histórias policiais com o material que temos à mão. Mas é essa facilidade que nos inviabiliza para o gênero. Não há o que descobrir quando todos sabem de tudo e todos consentem em calar por hábito - terno azul que veste o corpo da covardia. Se não há saída, nenhum caso poderá ser decifrado.
E se não há o que descobrir, todos são bandidos. O inspetor que no início da trama comporta-se com indiferença não reverte, no final - como acontece nos romances do gênero -para uma nobreza tardiamente revelada. Ao contrário: aqui o nosso detetive acaba confundindo-se com a matéria-prima que ele tenta revolver. O mais trágico -e magistral - é que o autor não reivindica a salvação, como acontece de maneira demagógica nos romances policiais.
Tradicionalmente, quando o detetive revela enfim sua humanidade, no desfecho, é o escritor que encontra uma válvula para reconstruir-se e partir para um novo romance. Isso não acontece em José Onofre, porque sua ética é tão destruidora quanto a política recriada em seu livro. Ele fecha o cerco sobre si mesmo e se retira para não mais voltar. Acaba reaparecendo num baú escondido num evento medíocre. Lá ele nos espera, com a chave do seu enigma, contrapondo-se ao horror, armado apenas de algumas palavras.
Se fosse em Londres, chamariam essa postura e essa capacidade de talento. Como é no Brasil, podemos chamá-las de coragem, que é a única arma capaz de revelar a verdadeira vocação para a literatura entre nós.
Nei Duclós
Fiz uma visita à Bienal do Livro, em São Paulo, para não me arrepender depois. Foi pior: me arrependi durante. Entrei junto com cem mil crianças uniformizadas. Tinha palhaço, pipoca, cafezinho, pizza e, soterrando alguns lançamentos excelentes, muitos livros sobre nada, ostentados por autores capazes de tudo. Fui caçado pelos espalhadores de folhetos nos corredores cheios, umbrais que cercavam estandes de todos os tipos, a maioria vazios nas três horas em que fiquei lá (entre meio dia e três da tarde de uma quinta feira). Mas tive a sorte de esbarrar num baú de livros em promoção, uma caixa cheia da L&PM, que, entre muitos títulos, continha um exemplar da segunda edição de Sobra de Guerra, de José Onofre.
José Onofre está bem servido de fortuna crítica, porque a apresentação do livro é feita por Luis Fernando Veríssimo, seu leitor de longa data. Quem tem um fã de carteirinha como Veríssimo pode aposentar-se sem ter publicado uma única linha - o que não é o caso de José Onofre, jornalista de larga e profunda militância cultural, autor de textos primorosos sobre a melhor literatura e, como prova este livro, um escritor como poucos. Neste vôo literário enxuto e demolidor de Sobra de Guerra, ele entreabre um baú que o tempo - codinome da omissão - pensou ter fechado para sempre.
O que vemos é muito mais do que o corte afiado de suas frases. Mas algumas podem ser destacadas, por ordem de aparição, como nos filmes, para servir de vitrine do que estamos falando:
?A História é o romance das decisões raras.
Você é um cão de caça jogado ainda vivo e jovem num freezer.
Apenas o gesto exato põe em movimento a roda da fortuna.
A máfia entrou na literatura e a literatura entrou no crime.
O que o pais precisa é bom senso e boca fechada.
Dá o fora antes que eu esqueça que sou um humanista.?
Onofre explora a superficialidade da tampa para sugerir a profundidade do poço. O diálogo escasso e alguns perfis ariscos dos personagens narram um crime que parece passional e pode ser político; o sufoco de um apartamento ensanguentado, a redação de jornal rondando a úlcera, uma delegacia com fantasmas no armário são flashes de ambientes que não merecem mais do que um ou dois parágrafos. Sinal de que Onofre não perde tempo para dizer a que veio - já que pressupõe o leitor como um cúmplice, a quem não se deve muitas explicações., afora o essencial - ou seja, os detalhes.
O país que emerge dessa usura narrativa é o mesmo revelado em qualquer mesa de bar, quando se fala pouco para a conversa não desviar a atenção do copo. A contenção leva o leitor a uma paisagem de primeiros planos, quando é possível reconhecer a máscara de cada um. O tiro desferido poupa o espelho quando podemos reconhecer, pelo reflexo da sobra, a essência da guerra. Vemos então um território que o romance policial clássico - e estrangeiro - costuma catar no lixo. Se cavarmos qualquer história de detetive escrita em inglês encontraremos o Brasil naquilo que os personagens adoram pisar, e que aqui costumamos comer. Aparentemente, fica simples escrever histórias policiais com o material que temos à mão. Mas é essa facilidade que nos inviabiliza para o gênero. Não há o que descobrir quando todos sabem de tudo e todos consentem em calar por hábito - terno azul que veste o corpo da covardia. Se não há saída, nenhum caso poderá ser decifrado.
E se não há o que descobrir, todos são bandidos. O inspetor que no início da trama comporta-se com indiferença não reverte, no final - como acontece nos romances do gênero -para uma nobreza tardiamente revelada. Ao contrário: aqui o nosso detetive acaba confundindo-se com a matéria-prima que ele tenta revolver. O mais trágico -e magistral - é que o autor não reivindica a salvação, como acontece de maneira demagógica nos romances policiais.
Tradicionalmente, quando o detetive revela enfim sua humanidade, no desfecho, é o escritor que encontra uma válvula para reconstruir-se e partir para um novo romance. Isso não acontece em José Onofre, porque sua ética é tão destruidora quanto a política recriada em seu livro. Ele fecha o cerco sobre si mesmo e se retira para não mais voltar. Acaba reaparecendo num baú escondido num evento medíocre. Lá ele nos espera, com a chave do seu enigma, contrapondo-se ao horror, armado apenas de algumas palavras.
Se fosse em Londres, chamariam essa postura e essa capacidade de talento. Como é no Brasil, podemos chamá-las de coragem, que é a única arma capaz de revelar a verdadeira vocação para a literatura entre nós.
27 de setembro de 2002
WONDER BOYS: O COMODISMO DA REVOLTA
Nei Duclós
Happy end é a vitória da tradição redefinida - na sua aparência - pelo conflito. Este, funciona no cinema americano como atualização permanente dos princípios do que eles chamam América - o sonho que só existe na tela e que na realidade revela-se como pesadelo. Wonder boys (1999), de Charles Hanson, mostra que nenhuma intensidade do conflito poderá jamais abalar a tradição.
Há neste filme todo tipo de ?insanidade? que, no fim, adere ao leito normal: o professor/autor puxador de fumo e travado na criatividade, a reitora/amante que sonha largar o marido intelectual (estranho guardião de um casaco de Marilyn Monroe), o aluno freak armado em surto permanente, a aluna aplicada que pretende seduzir o mestre, o editor picareta que assedia meninos. Todos se acertam no final porque a América precisa seguir em frente, intacta, alimentada pela diversidade dos desvios tornados inócuos.
Era assim nos filmes românticos em que o casal impossível acabava se casando, e nos outros em que o pai de família em fuga voltava ao lar. O cinema americano mostra que a inclusão não se importa com a origem ou a natureza do problema, mas sim a contribuição do caos para a estabilidade da América. O importante é que no fim o migrante jure a bandeira estrelada e com listas (que aparece obrigatoriamente em cem por cento dos filmes, já que o cinema reitera virtualmente a América para justificá-la como dona do mundo), o marido volte a se apaixonar pela esposa, o negro se abrace com o adversário branco.
O radicalismo assim serve ao poder como pimenta em prato sem gosto. A América como síntese do mundo serve para substituí-lo. O resto são espaços sem forma, como o vasto território que começa no Rio Grande e termina na Terra do Fogo, onde todos tocam maracas, usam bigodes e chapéus e fogem para o Rio depois de dar um golpe. Os Estados Unidos mantém a exclusão como fonte inspiradora da inclusão imposta internamente via indústria ?cultural?. No seu universo, não existem povos, existem biotipos. O lationoamericano divide-se entre o chicano traficante, o porto-riquenho policial de boa índole, o bandido mexicano e as putas hispânicas. Existem hoje os palestinos vilões no lugar que décadas atrás era exaustivamente ocupada pelos alemães.
O truque de mais profunda repercussão é o do heróis solitário, em luta com uma contrafação do governo, uma imitação maligna do poder: a quadrilha liderada por um ex-combatente, um ex-agente da CIA (num ciclo recorrente do coronel Kurz, de Conrad/Coppola). O herói, que aparentemente está decepcionado com o governo (o que o identifica com a gang que o ataca) acaba fazendo todo o jogo sujo: enfrenta a imitação de governo para destruí-la sozinha, antes que chegue o xerife. É um método de introduzir a América virtual na ação individual (metáfora fajuta da liberdade).
Não há saídas no cinema americano. Há happy end. Os heróis que acabam dizendo alguma coisa morrem no final, como os easy riders.
Happy end é a vitória da tradição redefinida - na sua aparência - pelo conflito. Este, funciona no cinema americano como atualização permanente dos princípios do que eles chamam América - o sonho que só existe na tela e que na realidade revela-se como pesadelo. Wonder boys (1999), de Charles Hanson, mostra que nenhuma intensidade do conflito poderá jamais abalar a tradição.
Há neste filme todo tipo de ?insanidade? que, no fim, adere ao leito normal: o professor/autor puxador de fumo e travado na criatividade, a reitora/amante que sonha largar o marido intelectual (estranho guardião de um casaco de Marilyn Monroe), o aluno freak armado em surto permanente, a aluna aplicada que pretende seduzir o mestre, o editor picareta que assedia meninos. Todos se acertam no final porque a América precisa seguir em frente, intacta, alimentada pela diversidade dos desvios tornados inócuos.
Era assim nos filmes românticos em que o casal impossível acabava se casando, e nos outros em que o pai de família em fuga voltava ao lar. O cinema americano mostra que a inclusão não se importa com a origem ou a natureza do problema, mas sim a contribuição do caos para a estabilidade da América. O importante é que no fim o migrante jure a bandeira estrelada e com listas (que aparece obrigatoriamente em cem por cento dos filmes, já que o cinema reitera virtualmente a América para justificá-la como dona do mundo), o marido volte a se apaixonar pela esposa, o negro se abrace com o adversário branco.
O radicalismo assim serve ao poder como pimenta em prato sem gosto. A América como síntese do mundo serve para substituí-lo. O resto são espaços sem forma, como o vasto território que começa no Rio Grande e termina na Terra do Fogo, onde todos tocam maracas, usam bigodes e chapéus e fogem para o Rio depois de dar um golpe. Os Estados Unidos mantém a exclusão como fonte inspiradora da inclusão imposta internamente via indústria ?cultural?. No seu universo, não existem povos, existem biotipos. O lationoamericano divide-se entre o chicano traficante, o porto-riquenho policial de boa índole, o bandido mexicano e as putas hispânicas. Existem hoje os palestinos vilões no lugar que décadas atrás era exaustivamente ocupada pelos alemães.
O truque de mais profunda repercussão é o do heróis solitário, em luta com uma contrafação do governo, uma imitação maligna do poder: a quadrilha liderada por um ex-combatente, um ex-agente da CIA (num ciclo recorrente do coronel Kurz, de Conrad/Coppola). O herói, que aparentemente está decepcionado com o governo (o que o identifica com a gang que o ataca) acaba fazendo todo o jogo sujo: enfrenta a imitação de governo para destruí-la sozinha, antes que chegue o xerife. É um método de introduzir a América virtual na ação individual (metáfora fajuta da liberdade).
Não há saídas no cinema americano. Há happy end. Os heróis que acabam dizendo alguma coisa morrem no final, como os easy riders.